O inglês Ian Mcwean deu o título de "Solar" a uma novela fictícia a que por sua vez decidiu dividir cronologicamente em três partes. A coisa começa em 2000 e acaba em 2009. Lá pelo meio, algures em 2005, aconteceu um episódio que me veio à memória depois de ter acontecido hoje um fenómeno gémeo.
Michael Beard é um físico galardoado com o prémio Nobel e é o protagonista de "Solar". Já o físico dele próprio é um desafio perdido. Engordado nos cinquenta e tal anos, é frequente começar a suar quando se vê confrontado por alguém fisicamente mais dotado. Estamos no ponto em que as páginas do livro colocam Beard na estação de Paddington. O velho redondo compra um pacote de batatas fritas, um dos seus vícios, e entra para o comboio. Algures na viagem, pega no pacote de batatas fritas que está em cima do banco e começa a comer as batatas. Em frente a ele está um homem forte e alto e isso vê-se sem sacrifício apesar de ele estar sentado. E qual não é o desplante do passageiro gigante: vai ao saco de batatas fritas que Beard segura com a mão esquerda e tira uma batata. E come a batata com ar de quem está deliciado. Beard fica tão incrédulo como colado ao assento porque o adversário é mais corpulento.
Num gesto de coragem, pegou na garrafa de água do outro e deu um gole. O outro carregou o semblante e nada mais fez. A seguir a esse momento de pânico, no fim da linha, o homem mais novo levantou-se e Michael Beard lamentou a ousadia. Com um gesto, o jovem puxou a mala de velho físico e colocou-a aos pés do dono. Foi cada um à sua vida. Já dentro do táxi a caminho de casa, Beard sentiu um estalido metálico no bolso do sobretudo, levou lá a mão e ficou vermelho de vergonha ao ver intacto o pacote de batatas fritas que tinha comprado em Paddington. Pensou no que o homem teria ficado a pensar dele. Tinha sido inocente, mas idiota chapado ao mesmo tempo.
Semanas mais tarde, durante uma conferência sobre os benefícios das energias alternativas em deterimento dos combustíveis usuais, Beard utilizou este exemplo numa palestra para dizer que em situações de crise, por vezes o problema não está nas outras pessoas, nem no sistema, nem natureza das coisas, mas em nós mesmos.
No final da palestra, na fase dos cumprimentos e dos elogios, o prémio Nobel Michael Beard foi abordado por um jovem que lhe perguntou onde tinha ido buscar a história do comboio. "Foi como disse", respondeu. O interpelador foi em frente no reaciocínio e explicou que aquela história era conhecida, mudadada aqui e ali, mas mantendo a mesma linha no essencial. "até tem um nome", disse. "É o ladrão involuntário".
Ontem ao fim da tarde dei uso pela segunda vez mensal do costume ao cartão de crédito do banco. Na operação de rotina bi-mansal parei numa das bombas de gasolina do Candal e atestei o depósito com gasóleo. Hoje à tarde abri a carteira e não vi lá o cartão de crédito. A minha cabeça passou por acusar mentalmente o homem das bombas, os clientes que lá teriam ido a seguir ou eventualmente alguém que tivesse visto a minha carteira e tivesse de lá retirado o cartão. Saio a correr da esplanada, ligo a ignição, ponho o carro a correr ainda mais depressa e em casa ligo-me à internet e ligo ao banco para cancelar o cartão. A meio da conversa com o senhor que em Lisboa procedia à anulação, levo a mão ao bolso dos calções e descubro lá o cartão de débito. Abro a carteira e verifico que o cartão de crédito esteve sempre lá dentro, embora estivesse numa ranhura que não a habitual. Naquel fase da viagem, já não havia marcha atrás possível. Anulei um cartão que tinha dentro da carteira. O problema esteve sempre na forma como os meus olhos (não) viram a acção e não nos outros. O erro vai custar-me cerca de 30 euros. Ladrãozito involuntário de mim próprio.
Michael Beard é um físico galardoado com o prémio Nobel e é o protagonista de "Solar". Já o físico dele próprio é um desafio perdido. Engordado nos cinquenta e tal anos, é frequente começar a suar quando se vê confrontado por alguém fisicamente mais dotado. Estamos no ponto em que as páginas do livro colocam Beard na estação de Paddington. O velho redondo compra um pacote de batatas fritas, um dos seus vícios, e entra para o comboio. Algures na viagem, pega no pacote de batatas fritas que está em cima do banco e começa a comer as batatas. Em frente a ele está um homem forte e alto e isso vê-se sem sacrifício apesar de ele estar sentado. E qual não é o desplante do passageiro gigante: vai ao saco de batatas fritas que Beard segura com a mão esquerda e tira uma batata. E come a batata com ar de quem está deliciado. Beard fica tão incrédulo como colado ao assento porque o adversário é mais corpulento.
Num gesto de coragem, pegou na garrafa de água do outro e deu um gole. O outro carregou o semblante e nada mais fez. A seguir a esse momento de pânico, no fim da linha, o homem mais novo levantou-se e Michael Beard lamentou a ousadia. Com um gesto, o jovem puxou a mala de velho físico e colocou-a aos pés do dono. Foi cada um à sua vida. Já dentro do táxi a caminho de casa, Beard sentiu um estalido metálico no bolso do sobretudo, levou lá a mão e ficou vermelho de vergonha ao ver intacto o pacote de batatas fritas que tinha comprado em Paddington. Pensou no que o homem teria ficado a pensar dele. Tinha sido inocente, mas idiota chapado ao mesmo tempo.
Semanas mais tarde, durante uma conferência sobre os benefícios das energias alternativas em deterimento dos combustíveis usuais, Beard utilizou este exemplo numa palestra para dizer que em situações de crise, por vezes o problema não está nas outras pessoas, nem no sistema, nem natureza das coisas, mas em nós mesmos.
No final da palestra, na fase dos cumprimentos e dos elogios, o prémio Nobel Michael Beard foi abordado por um jovem que lhe perguntou onde tinha ido buscar a história do comboio. "Foi como disse", respondeu. O interpelador foi em frente no reaciocínio e explicou que aquela história era conhecida, mudadada aqui e ali, mas mantendo a mesma linha no essencial. "até tem um nome", disse. "É o ladrão involuntário".
Ontem ao fim da tarde dei uso pela segunda vez mensal do costume ao cartão de crédito do banco. Na operação de rotina bi-mansal parei numa das bombas de gasolina do Candal e atestei o depósito com gasóleo. Hoje à tarde abri a carteira e não vi lá o cartão de crédito. A minha cabeça passou por acusar mentalmente o homem das bombas, os clientes que lá teriam ido a seguir ou eventualmente alguém que tivesse visto a minha carteira e tivesse de lá retirado o cartão. Saio a correr da esplanada, ligo a ignição, ponho o carro a correr ainda mais depressa e em casa ligo-me à internet e ligo ao banco para cancelar o cartão. A meio da conversa com o senhor que em Lisboa procedia à anulação, levo a mão ao bolso dos calções e descubro lá o cartão de débito. Abro a carteira e verifico que o cartão de crédito esteve sempre lá dentro, embora estivesse numa ranhura que não a habitual. Naquel fase da viagem, já não havia marcha atrás possível. Anulei um cartão que tinha dentro da carteira. O problema esteve sempre na forma como os meus olhos (não) viram a acção e não nos outros. O erro vai custar-me cerca de 30 euros. Ladrãozito involuntário de mim próprio.
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