Uma rapariga dança no passeio, na metade do caminho da rua Formosa, entre Santa Catarina e a rua da Alegria. As calças são justas, pele de zebra. Claro que sim, pretas e brancas. Para cima tem uma t-shirt azul do super-homem. Rodopia com a dança dos pés e rodopia com o braço direito ao alto e de indicador em riste. O Michael Jackson está no primeiro andar, no princípio de uma carreira a solo, a ensaiar uma música à qual vai dar o nome de don´t stop till you get enough. Este som, que vem da janela de um velho prédio da baixa do Porto, começa agora a indavir as ruas, e não duvido que, um dia, vá conquistar o mundo. O mundo está a encolher a olhos vistos. Apenas um quarteirão mais acima, em Fernandes Tomás, o Woody Allen está no primeiro lugar da fila na paragem de autocarros, mesmo em frente ao Plaza. Tem as mãos nos bolsos, a cabeça levantada na direcção do telhado da igreja dos congregados, os óculos pretos em massa, no lugar do costume. Só a cor do cabelo destoa um pouco. É de um castanho uma pouco mais claro do que o normal. Isso e a roupa levam-me concluir que aquele Woody Aleen é o da década de 70. Vinte metros mais acima, a loja de instrumentos faz da montra um palco onde cabem a bateria, uma guitarra eléctrica, duas violas, uma concertina, o contrabaixo e os ferrinhos. Um dos tripés da exposição está vazio. É isso, falta o clarinete. Entro, pergunto e o dono diz que acaba de ser despachado por via marítima para Nova Iorque.Pode ter sido de ter dormido poucas horas de sexta para sábado. Mas já que estou acordado e é sábado de manhã e estou na baixa do Porto, o melhor é parar de fazer filmes. Deve ser do estômago vazio… Subo as escadas rolantes no interior de um centro comercial e é aí que trato de elevar esta tosta mista, onde misturo realidade e ficção, ao extremo. Não é que para lá de um muro baixo em acrílico transparente, o Leonardo Cohen desembrulha um bolo de arroz com mil cuidados, deslumbrado com a beleza do papel, mas também por causa da velocidade que a idade lhe autoriza os movimentos. Sim. A idade, com o tempo, dá ao corpo um limitador de velocidade. O Cohen foi o único a chegar aqui a esta história em tempo real. Talvez por isso permaneça sentado. A molhar o bolo de arroz no café e a lamentar a pequenez da chávena, enquanto que o Michael Jackson se despede dos músicos com um até sempre e o Woody apanha o autocarro, já a pensar que a viagem de avião o vai fazer chegar aos states muito mais cedo do que o clarinete. Quando o instrumento chegar aos Açores, ele afinal conseguiu acabar o argumento de mais um filme e começa a dizer em voz baixa que a viagem ao Porto talvez tenha sido uma perda de tempo porque já não vai ter tempo para músicas. O Jackson descansa em paz sem problemas de tempo. O Leonard Cohen consegue arranjar tempo para mais um bolo de arroz no Plaza. Ao atravessar a rua, a rapariga das calças de zebra mistura-se com a passadeira. Perco-lhe o rumo sem perceber se o tempo vai fazer dela uma super-mulher.
Os perigos da insónia
Há 8 horas
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