31.5.10

O homem que disse sou mais feliz quando estou triste

Escrevia para um jornal às segundas, terças e quintas. Ficava por casa às quartas e sextas. Fazia a mala permitida por lei nas companhias da aéreas de low-cost e ao sábado acordava às cinco da manhã. Punha o nariz do lado de fora da janela da marquise, ritual celebrado em tronco nu, ameaçasse o tempo sol, ameaçasse o tempo chuva. O frio dava-lhe sempre mais a impressão de ter sangue na veias. Ficava contente à janela com as temperaturas baixas, a apreciar a magia dos pêlos eriçados , da pela de galinha, do arrepio de norte a sul da coluna. E ia triste para dentro porque preferia os dias de sol e hoje o termómetro era capaz de estar com de vontade falar baixinho.
Pegou na mala e no casaco. Guardou o telefone. Trancou a casa. Desceu as escadas a sorrir porque não tinha mensagens nem chamadas por atender e isso era bom. Significava que não o tinham tentado aborrecer com qualquer detalhe inútil de qualquer vida individual ou colectiva. Quando aterrava solitário nos aeroportos baratos da Europa e ligava o telemóvel, voltava ficar contente por não ter sido importunado durante o tempo em que o telefone tinha estado desligado. A caminho das plataformas dos autocarros ou dos comboios sentia-se triste pelo tarifário ser de carregamentos e por ter o saldo a chegar ao zero e não poder ligar a alguém, uma vez que o roaming fazia uma chamada viajar a um preço mais elevado do que a pessoa dele tinha embarcado desde o Porto.
Aos domingos regressava na hora em que os dias por norma estão a fechar os olhos para dormir. Tinha até à meia-noite para escrever a primeira crónica da semana. Encontrou o título por cima das nuvens da Europa: "sou mais feliz quando estou triste".
Pediram-lhe para desenvolver o tema na terça-feira. As vendas do jornal tinham disparado. A crónica andava na boca dos programas de rádio e nos olhos de todas as televisões. E choveram todos os convites para o homem que escrevia às segundas, terças e quintas. Sorriu ao pensar no interminável número de pessoas com disponibilidade de olhar para as letras ensinadas por ele. E de imediato o rosto ficou com um qualquer adjectivo triste. Teve a certeza de que nunca mais iria ficar sozinho.

Os fantasmas

Há estes objectos no quarto: um martelo em cima da cama, uma caixa rectangular do tamanho de um caixote de uma televisão antiga e uma outra do mesmo tamanho com fotos do passado. Entro e fecho a porta. Pego no martelo, nas fotos e nos pregos. Quando começo a martelar vem das quatro paredes o som de Anyone´s Ghost, dos abaixo reproduzidos National. Preguei todas as fotos com todos os pregos em todas as quatro paredes. Martelei sempre ao ritmo da bateria. Tive dias no passado a preto e branco e tive dias a cores. Sorrisos. Indiferenças. Forrei o quarto com o passado em dois minutos e cinquenta quatro segundos. As fotografias eram de grandes dimensões. E eis que estava a pressentir o fim de Anyone´s Ghost. Fechei a porta sem olhar para trás. Tranquei o passado com a chave e vim para a rua. Dei a minha mão à tua e deixei cair a chave pelos buracos de uma grelha de aço que havia no chão e por baixo da qual passa um ribeiro subterrâneo nesta parte da freguesia. Seguimos em frente. Imunes a fantasmas.


The National, Anyone´s Ghost

28.5.10

Homens que nos levam ao céu (I)

Bon Iver
Uma guitarra, quando ouve uma voz, e no caso de a voz estar à beira do fim da rua onde só vão as vozes chorar de raiva e de dor, a guitarra também chora? E as baquetas e o tambor? Só estão ali para combinar o ritmo ou foram convidadas por alguém, das amizades do cantor, para este funeral de um amor solteiro até à cova?
A música, esta manhã quando acordou escolheu vestir um xaile preto pelos ombros e para os pés quis umas sandálias pretas sem tacão a fim de os proteger, porque no coração do cantor ia já uma consumição da cor do inferno e as dores nos pés só iam a atrapalhar a dor da sua principal função e neste caso a sua função principal era a de dar nós invisíveis à volta do coração. Mas o cantor não é um homem? Então o porquê da sugestão da possibilidade de sandálias pretas com tacão no bilhete de identidade da mortalha? Talvez seja quem escreve a dizer que um homem quando escreve um texto com o título homens que nos levam ao céu, está a pensar um tudo menos em sexo, esbatido aqui o sexo à condição de relação entre corpos do mesmo género.


Bon Iver - Skinny Love

27.5.10

A extraordinária primeira pessoa do singular

O inglês Ian Mcwean deu o título de "Solar" a uma novela fictícia a que por sua vez decidiu dividir cronologicamente em três partes. A coisa começa em 2000 e acaba em 2009. Lá pelo meio, algures em 2005, aconteceu um episódio que me veio à memória depois de ter acontecido hoje um fenómeno gémeo.

Michael Beard é um físico galardoado com o prémio Nobel e é o protagonista de "Solar". Já o físico dele próprio é um desafio perdido. Engordado nos cinquenta e tal anos, é frequente começar a suar quando se vê confrontado por alguém fisicamente mais dotado. Estamos no ponto em que as páginas do livro colocam Beard na estação de Paddington. O velho redondo compra um pacote de batatas fritas, um dos seus vícios, e entra para o comboio. Algures na viagem, pega no pacote de batatas fritas que está em cima do banco e começa a comer as batatas. Em frente a ele está um homem forte e alto e isso vê-se sem sacrifício apesar de ele estar sentado. E qual não é o desplante do passageiro gigante: vai ao saco de batatas fritas que Beard segura com a mão esquerda e tira uma batata. E come a batata com ar de quem está deliciado. Beard fica tão incrédulo como colado ao assento porque o adversário é mais corpulento.
Num gesto de coragem, pegou na garrafa de água do outro e deu um gole. O outro carregou o semblante e nada mais fez. A seguir a esse momento de pânico, no fim da linha, o homem mais novo levantou-se e Michael Beard lamentou a ousadia. Com um gesto, o jovem puxou a mala de velho físico e colocou-a aos pés do dono. Foi cada um à sua vida. Já dentro do táxi a caminho de casa, Beard sentiu um estalido metálico no bolso do sobretudo, levou lá a mão e ficou vermelho de vergonha ao ver intacto o pacote de batatas fritas que tinha comprado em Paddington. Pensou no que o homem teria ficado a pensar dele. Tinha sido inocente, mas idiota chapado ao mesmo tempo.

Semanas mais tarde, durante uma conferência sobre os benefícios das energias alternativas em deterimento dos combustíveis usuais, Beard utilizou este exemplo numa palestra para dizer que em situações de crise, por vezes o problema não está nas outras pessoas, nem no sistema, nem natureza das coisas, mas em nós mesmos.
No final da palestra, na fase dos cumprimentos e dos elogios, o prémio Nobel Michael Beard foi abordado por um jovem que lhe perguntou onde tinha ido buscar a história do comboio. "Foi como disse", respondeu. O interpelador foi em frente no reaciocínio e explicou que aquela história era conhecida, mudadada aqui e ali, mas mantendo a mesma linha no essencial. "até tem um nome", disse. "É o ladrão involuntário".


Ontem ao fim da tarde dei uso pela segunda vez mensal do costume ao cartão de crédito do banco. Na operação de rotina bi-mansal parei numa das bombas de gasolina do Candal e atestei o depósito com gasóleo. Hoje à tarde abri a carteira e não vi lá o cartão de crédito. A minha cabeça passou por acusar mentalmente o homem das bombas, os clientes que lá teriam ido a seguir ou eventualmente alguém que tivesse visto a minha carteira e tivesse de lá retirado o cartão. Saio a correr da esplanada, ligo a ignição, ponho o carro a correr ainda mais depressa e em casa ligo-me à internet e ligo ao banco para cancelar o cartão. A meio da conversa com o senhor que em Lisboa procedia à anulação, levo a mão ao bolso dos calções e descubro lá o cartão de débito. Abro a carteira e verifico que o cartão de crédito esteve sempre lá dentro, embora estivesse numa ranhura que não a habitual. Naquel fase da viagem, já não havia marcha atrás possível. Anulei um cartão que tinha dentro da carteira. O problema esteve sempre na forma como os meus olhos (não) viram a acção e não nos outros. O erro vai custar-me cerca de 30 euros. Ladrãozito involuntário de mim próprio.

O réptil

Em fim de ciclo, o treinador de futebol está sozinho na selva e é o primeiro a ouvir barulho da cobra no mato, a arrastar o fim.
Hoje o estádio está cheio, os jogadores está a marcar muitos golos, o futebol que a equipa tem para apresentar podia até ser vendido em pequenos frascos como um perfume. O barulho nas bancadas tem o cheiro da vitória. Estão todos surdos no estádio, menos um. No clube em que está, o treinador sabe que quanto mais longe do primeiro lugar, mais perto da porta de saída. Mais perto da selva.
Num passe mais largo rente ao chão, o som do couro da bola a cortar a relva entra nos ouvidos no treinador como o tal barulho da cobra prestes a engolir um homem inteiro. O animal que o devora, não o devora sem antes lhe deixar as pistas todas sobre a evolução da relações humanas. Os répteis não sobrevivem sem a renovação dos tecidos. Não crescem sem a mudança total e recorrente de pele. Uma pele velha que tenha resistido à substituição pode fazer apodrecer os novos tecidos ou pode causar necroses. Elementar meu caro treinador de futebol.
Nesta fase de peles em trânsito, a nova que está para chegar, mas que só chegará saudável se tiver havido a remoção total da anteriro, nesta fase a ciência aconselha: nada de stress e cuidados com parasitas externos.
Um clube de futebol sobrevive no jogo da imitação dos répteis. O treinador é a pele. A essa, já vimos o que acontece de tempos a tempos.

26.5.10

Gato Pardo

Sentado ao balcão, tenho ao lado um casal muito bem parecido com sessenta e muito poucos anos. Somos os três a plateia do dono do café. Ele gesticula para explicar com os braços a forma como tentou fazer o resgate de um animal doméstico que andava perdido há três semanas. Nesta altura em que tomo atenção ao monólogo entusiasmado do único actor da cena, quando ele baixa um braço e levanta o outro, eu confesso que não estou a ouvir a aventura e dou por mim a pensar numa maneira de escrever a história mais tarde.
O dono do café, sempre depois do fecho, tirava o avental de dono do café e era o homem do assobio. Palmilhava a escuridão dos acessos a casa, empurrava arbustos para o lado, espreitava para lá dos muros, olhava com medo para a estrada, não fosse dar-se o caso de ver na estrada um animal anteriormente conhecido por gato, estragado e morto pelos pneus de algum carro.
Estou na ponta mais à direita da plateia de três. Estamos a assitir ao segundo acto de três. Ao fim de três semanas, o assobio fez eco. Bem, não era bem eco: o assobio teve resposta. Um gato miava come se estivesse rouco, com a falta de força de quem está doente. O homem deixou-se levar pelos ouvidos até um sítio com árvores rasas. Afastou-as todos e ganhou no campo de visão um buraco. Naquele plano picado, o gato pardo podia ser o dele ou não. Em camisa de manga curta, já depois da meia-noite, relativamente longe de casa e sozinho num baldio, sentiu medo e ficou a olhar para o gato, com pele de galinha nos braços. Foi a casa.
No terceiro acto, o dono do café já tem na mão um vara fina de ferro. Na vara amarrou um fio. No fio amarrou uma bola. Enfiou a invenção no buraco à espera que gato se lembrasse de cravar as unhas na bola como um guarda-redes e que viesse à boleia dela para a superfície. Aconteceu o que tinha de acontecer. O gato não era um peixe e por isso aquela espécie de cana foi atirada para o chão. E dono que foi a casa e com o calor da genial invenção nas ideias, nem lhe passou pela cabeça a ideia de um casaco para cobrir os braços.
Tornou a olhar para o gato e gato pareceu-lhe mais pequeno. Arriscou. Meteu o braço direito no buraco e rangeu dentes para o caso de vir por aí alguma dor arrepiante. Mas nada disso! O gato deixou que mão fosse um elevador e decidiu ficar sossegado à espera de ver onde a porta ia abrir. A porta abriu no colo do dono do café e do gato. Ao levá-lo para casa, sentiu-o mais leve no braços. Espantava-se com a façanha de um gato que viveu sempre dentro de casa ter conseguido resistir à morte sem a alcofa, o leite no prato, o fimbre e os enlatados. Como se o intinto animal fosse apenas uma coisa dos livros e nunca uma expressão que encerra realidades.

25.5.10

O chão que ela pisa

Sabe bem o frio do soalho de madeira por baixos dos pés. Estes dois encaminharam o corpo daqui para o lugar onde está uma fruteira em arames de inox. O corpo regressou com uma maçã nas mãos e com os pés felizes. O esquerdo e o direito, só costumam sorrir assim quando estão a tentar desenhar a última obra prima, no interior de um par de chuteiras. Não é normal o facto de andarem como se andassem nas nuvens no estado de nudez em que se encontram, mas para isso há uma explicação e a explicação é a de o soalho estar a bombear ar puro ao corpo inteiro. Chegando ao ponto de arejar a própria cabeça de um português desiludido com o futebol de uma selecção que teima em meter os pés pelas mãos.
Vamos então ao chão que ela pisa, sendo que o chão que ela pisa, aqui, não poderá ser nunca o livro de Salman Rushdie musicado pelos U2 sobre a história de uma banda com um casal no meio. O chão que ela pisa é neste particular o caminho feito e a fazer pela selecção portuguesa de futebol. Sem recurso ao GPS, chego-me à frente para afirmar com estas letras todas que por este andar, mantendo esta rota, e nesta velocidade de quem vai em passeio, a África do Sul que vai surgir no horizonte é o fim de um continente numa falésia sobre o mar revolto e numa zona sem praia. Adivinha-se queda livre e inevitável naufrágio. E isso seria uma tormenta.
A selecção portuguesa que jogou e empatou a zero com Cabo Verde, essa de Queiroz, cabe na metáfora de uma mulher de século XVIII dentro do espartilho. O meio campo, está preso ao chão por cordas que podiam ser as cordas que esmagam a cintura. Com isso, lá em cima, no ataque, respira-se com dificuldade normal de quem tem falta de ar, de bola. Em baixo, na defesa, não chegou a dar para ver se junto à relva, a defesa portuguesa dá os sinais vitais que os meus pés dão sobre o frio confortável deste soalho. (professor, estamos na era do topless. Ponha lá os rapazes à solta.)

23.5.10

O alfaiate português

No final de estação, e ultrapassadas as inevitáveis vaidades da passerelle, o mundo descartável da moda reunia nos bastidores e aguardava a sentença, sempre absoluta, de juízes extremamente convictos. Entravam pelas portas amplas da rua dos ateliers finos, apontavam o dedo, faziam beicinho, decidiam se sim ou se não com uma minimalíssima expressão de rosto, compreendida de imediato pelo mundo interior de criadores, criadinhos e afins.
A mercadoria reprovada era atirada sem perder tempo para lá da porta estreitinha dos fundos e naquele lugar os fundos confluíam todos num beco com saída para um braço de rua onde haveria de passar o camião do lixo.

Aqui as grandes casas são clubes de futebol. A mercadoria é o jogador de futebol. Os juízes são os directores, os treinadores e os empresários. Milão podia ser uma finíssima escolha para falar de estilistas e arredores, mas não vai ser. Será o lugar onde o camião do lixo chega com a mercadoria, proveniente de inúmeras cidades europeias, com mercadoria que ninguém quis ter, nem sequer na prateleira.
Cambiasso e Sneijder estavam a mais nos catálogos madrilenos. Eto´o tinha conhecido o fim da linha em Barcelona. Diego Milito andou dez anos pelo velho continente sem conseguir convencer nenhuma agência de castings e por aí foi andando sem nunca ter o passe para os grandes desfiles mundiais. É assim parte da história dos jogadores de futebol a quem um dia a saída foi indicada pelo juízo absoluto.
Na capital da moda, o presidente, que era o Massimo, juntou os retalhos todos e mandou emissário à freguesia de Aires. O emissário, chegado ao concelho de Setúbal, encontrou um alfaite também ele atirado para a rua, na condição de milionário, mas para a rua, por um oligarca viciado na roleta russa. O português era o homem à medida do fato. Trabalhou durante dois anos, cortando aqui, cosendo ali, subindo uma baínha, retirando um bolso, acrescentado botões. Ganhou dois prémios anuais italianos. Saíu do quarto de costura e foi a Madrid apresentar o resultado. Os homens mais ricos da cidade, no lugar da criação, compraram o criador. Criaturas!

22.5.10

O comboio de Liège

... acontece que no ano 2000 o mundo já era todo moderno. Daí vem o facto de eu ter estranhado a cor antiga das carruagens castanhas. O interior usado mas limpo de cada uma sem excepção. Resumindo: o ar velho - velho mas ainda não tão velho que se pudesse chamar antigo - do comboio responsável por unir de forma quase directa a cidade de Spa à capital Bruxelas. Admirei a Bélgica por ser um país mais rico do que Portugal e por não desperdiçar dinheiro em vaidades para as quais o dinheiro é caro.

Estou a fazer parte do caminho de regresso a Portugal. O táxi tinha chegado sem falta às 5 da manhãm ao hotel Dorint, onde fui jornalisticamente muito bem baptizado (Manuela Brandão, Eugénio Queiros, Jorge Monteiro, António Casanova; Paulo Duarte, Rui Gomes, Paulo Silva, etc, etc etc,). Fomos de Spa pelas luzes do carro e dos postes até Liège. No comboio era eu, a minha mala, o meu sono e belgas a caminho da ruralidade dos empregos. Tanto era o sono que já não me lembro se o comboio chegou perto do aeroporto ou se cheguei a seguir caminho noutro táxi. É indiferente.
À hora a que adormeço no avião para o Porto, nesse princípio de verão do ano 2000, Louis Van Gall é despedido do Barcelona e chega a seleccionador da Holanda. José Mourinho está para fazer a estreia como treinador principal no Benfica. Nesse mesmo defeso, um miúdo de 20 anos, Diego Milito, está começar uma época que vai terminar com o título de campeão argentino no Racing Avellaneda. O nome Robben só é conhecido nas camadas jovens do Groningen. Júlio César é um goleiro "minino" no Flamengo. Sneijder e Cambiasso ainda têm cabelo e jogam nas escolinhas do Ajax, um, e no Independiente, outro. A lista começa a parecer um comboio que não vai a lado nenhum. Já cá voltamos.

Meia dúzia de dias antes, uma sucessão de acasos leva-me ao sítio onde vou acabar esta história. O FC do Porto quer contratar Dimitri Alenitchev. Sei que é russo e que joga no Perugia de Itália. O Perugia está em Liège para jogar uma eliminatória da taça Intertoto. Apanho boleia dos camaradas de reportagem do jornal A Bola e consigo o exclusivo radiofónico da primeira entrevista do médio ofensivo russo para Portugal.
O dia seguinte é o dia do jogo entre o Standard de Liège e o Perugia. Conseguimos as acreditações necessárias e vamos para o estádio fazer a cobertura do encontro com o futuro reforço portista. Logo à entrada julgo que o Eugénio me chama à atenção para o Luciano D´Onofrio. Do nada reparo num personagem que à partida não devia fazer parte daquela história. Estavamos à procura de algum emissário do FC Porto e nada. Quem está em Liège para assistir ao jogo é o presidente da SAD do Sporting, o Luís Duque. Lá perguntámos se ele queria também o Dimitri. Ele sorriu e disse que não, que não. Estava à procura de um defesa central. Quem? "O Daniel". Quem é o Daniel? "O Van Buyten". Ouvi este nome pela primeira vez e depois disso confesso que acompanhei sempre à distância a carreira de um central que nunca chegou a vestir a camisola do Sporting.
Hoje voltei a reencontrar o Daniel, por via da transmissão televisiva. Tinha uma camisola vermelha com o número 5. Levou pela frente com o rapaz que um dia foi um miúdo do Racing de Avellaneda. E descarrilou como nunca descarrilaria um velho comboio belga.

PS: no resto da história, o treinador debutante ganhou ao seleccionador da Holanda.

21.5.10

Uma rua de levar para casa

Tinha desde sempre o sonho de ver o chão nascer aos quadradinhos. E não é que ele estava a ser parido passo a passo? As solas das botas caminhavam triunfantes sobre um filme a preto e branco que até à data só tinha passado por ele no mundo dos sonhos. O sorriso tapava-lhe as orelhas e era por isso que não ouvia a mãe a dizer para estar quieto, para parar de andar como um perdido e de incomodar toda a gente com os encontrões. Dizia-lhe a mãe para abrir os olhos, como se fosse possível arregalar mais aquelas duas órbitas inquietas. Havia lojas de gelados que se comiam em cones de bolacha até ter tudo desaparecido e o gelado ter parecido um sonho. Havia uma fábrica de bolos muito antiga, tão antiga que diziam ter vindo do Brasil ao sabor do vento, tendo o vento ficado adocicado desde então. Ao lado morava uma senhora africana. Da cor do chocolate. Tinha uma sociedade com o dono da leitaria. O dono da leitaria tinha entretanto oferecido uma loja de queijos ao filho mais velho, por alturas do casamento deste com a filha homem que mandou semear um jardim do tamanho de um campo de futebol. Veio gente de toda a parte para a boda. Depois do sim e do sim os rapazes mais novos jogaram com uma bola oferecida pelo inglês do correios ao noivo. Os outros convidados trouxeram todos as cadeiras para fora da igreja e ao redor do jardim fizeram uma bancada. Os pescadores contribuíram com duas redes. Em casa do ferreiro encontraram seis paus e fizeram duas balizas. No final toda a gente teve direito a levar um bocadinho da rua para casa.

59 segundos

Mulheres e homens sintonizam o mundo em frequências distintas. Ficaram elas com o corpo mais perfeito, graças a deus há quem diga, e ficaram eles com a capacidade de observar e absorver a beleza a partir de fora, graças a deus há também quem diga. Ficaram eles destinados ao pensamento e à força desde os primórdios dos tempos, reza a história, ficando a elas consignados o zelo do lar, o cuidado dos filhos e quando sobrasse tempo, o tratamento da beleza das próprias. O mundo foi assim durante muito tempo até que um dia o mundo se fartou de ser assim e ainda bem. A coisa agora anda mais ela por ela no entendimento da comparação entre homens e mulheres. Quase todas as tarefas, obrigações, direitos, deveres, profissões têm os dois sexos. A sociedade “bissexualizou-se” depressa e bem como dificilmente há quem. E até aí tudo bem! Agora… chegar ao ponto onde nas bancas dos jornais salta aos olhos (e cabelos e boca e nariz e cérebro) uma revista a dizer às mulheres que é possível mudar de vida em 59 segundos… A dizer e a espicaçar a fêmea no sentido de a fazer conjugar o verbo mudar em excesso de velocidade. Isso é entrar sem carta de condução num carro sem travões nem direcção assistida. Diz um homem, incapaz de mudar de cuecas em menos de um minuto

Mostarda

Lisboa está a lavar a cara para sair à rua. As torneiras da cidade viraram todas o letreiro a dizer fechado para a parte de dentro. Os corpos tiram a roupa, as pessoas conseguem ser nús solitários ou quando muito aos pares. Só os balneários assumem a reponsabilidade de receber gente nua aos magotes, devidamente dividida pelo mesmo sexo e aí os corpos são desportistas em desespero de causa, cansados, acabados de suar à força e em esforço. Água vem, água vai. Nesta certeza redonda da repetição de movimentos, chega a hora do regresso da cobertura às partes. A cidade vai sair à rua com chinelos, sandálias, sapatilhas e sapatos. Vai de calças quase toda e de casaco. A noite vai trazer uma tendência quase nula de mulheres com pernas à mostra. A Lisboa que está a jantar no bairro Alto não é só Lisboa, é Portugal de norte a sul e é o país na longitude. Tantas línguas se misturam à porta dos rsstaurantes. Lisboa está com ar de ter no regaço o mundo inteiro. À minha mesa, ao meu lado, está uma menina de doze anos que nasceu na Irlanda. Aprendeu a falar português sozinha quando tinha quatro. A primeira palavra que disse foi mostarda. Teve bom gosto.

1986

Lembro-me de ter os cabelos compridos com cheiro a fumo de cigarros. Lembro-me que era de manhã e estava frio, muito frio, frio ao ponto de ver na respiração o estilo dos fumadores. O meu pai e eu caminhavamos com a pressa dos que não querem mesmo mesmo chegar atrasados. O tabaco dele vinha sempre à baila nas conversas quando alguma senhora se chegava para me dar um beijo e dava mas dizia ó rapaz até parece que também fumas. E fumava, expelindo o ar quente dos pulmões entusiasmados em direcção à brisa gelada, afinal era um miúdo a quem o pai tinha levado para o acompanhar a um comício de uma campanha eleitoral. Neste primeiro ou segundo sábado de 1986, o rapaz de onze anos tinha a certeza de ser um homem informado, ciente das escolhas sociais adequadas à política que estava a fazer falta ao país. Um homem de sobretudo no palco pegou no microfone para chamar o Diogo Freitas do Amaral. Nesse dia vi pela primeira vez o antigo líder do CDS.

Uns meses mais tarde, no dia em que fiz 12 anos, a 9 de março, o Mário Soares tomou posse como Presidente da República, depois de ter vencido as terceiras eleições presidenciais desde o 25 de abril de 1974. Nesse dia atribuí parcialmente a derrota do Freitas ao facto de eu, e de tantos outros como eu na minha escola, não termos à data idade suficiente para votar. O melhor daquela manhã na praceta 25 de Abril, em Vila Nova de Gaia, foi ter passado o tempo todo de mão dada com o pai. Já nem me lembro da úlima vez em que o fiz.

E também não me lembro da última vez em que estive nas proximidades do Diogo Freitas do Amaral. Vou estar com ele esta noite. Gostava que no comício de 1986 ele nos tivesse dito que um dia ia ser ministro do negócios estrangeiros pelo PS. Depois o tabaco faz mal à saúde.

Memórias de uma quarta

A cor do sol anda a enganar o termómetro pela ocorrência de ter uma aventura com o vento. Isso começa a ser um atraso de vida. A luz vista da janela do segundo andar induz o corpo a cobrir as partes com roupa sem mangas, isto no respeitante aos membros superiores, e tecidos mais finos e calçado leve para as partes comuns ao rés-do-chão de uma pessoa. E o corpo assim faz, assim indo degraus abaixo na direcção da rua. Ao abrir ao porta é estar a abrir a caixa dos segredos térmicos. O vento não sai da beira da cor do sol. O pobre termómetro, guardado no armário dos medicamentos lá de casa, não faz a mais ténue ideia dos factos. A solução é subir e abrir o armário da roupa com muito cuidado, para que este não se aperceba e não vá de contar tudo ao primo afastado, o armário dos medicamentos. E abrindo então silenciosamente o armário da roupa, escolhe-se um casaco de meia estação. É remédio santo. O corpo não vai ser afectado pelo caso verificado entre a cor do sol e vento. O termómetro continua a acreditar na luz que vê pelo vidro da janela. E vai medindo os dias pela cor do sol.

A sanfona

A avenida da Boavista, nos dias bons, tem momentos iguais aos números de magia. Ela consegue ser aquele truque dos intermináveis lenços puxados pelo ilusionista. Aquilo nunca mais acaba. E isto também não, a capacidade de repetir os dias, repetindo rotinas às centenas de milhares, havendo em todos dias instantes que nunca tinham sido “publicados” antes.

Hoje andava um cão branco com um cesto pequenino na boca. Os dentes seguravam o arame. O cão estava sentado ao ombro de um homem moreno, extraordinariamente novo para aquele papel e invulgarmente baixo para quem já tem mais de 20 anos. O tacanho torso do pedinte não cumpria por ali a missão. Tinha na posição de uma mochila colocada à frente uma sanfona onde faltavam teclas. Os dedos dividiam tarefas entre a construção de um ruído pobre e o botão do semáforo que é como um requirimento para pedir verde para os peões e vermelho a travar as rodas do trânsito. O homem da sanfona nunca pedia dinheiro a quem passa a pé junto a três hotéis de cinco estrelas. Olhava na direcção dos carros como quem via mealheiros ambulantes. E batia nos vidros com o queixo. Tocava na sanfona com as mãos e ajudava ao balanço com um joelho. O cão esticava o focinho na mesma esperança dos pescadores quando a rede vai ao mar. Chamar um ilusionista era capaz de ser mais bem escolhido, se para ali estão com a ideia de ver moedas no ardil.

20.5.10

Porto

Uma rapariga dança no passeio, na metade do caminho da rua Formosa, entre Santa Catarina e a rua da Alegria. As calças são justas, pele de zebra. Claro que sim, pretas e brancas. Para cima tem uma t-shirt azul do super-homem. Rodopia com a dança dos pés e rodopia com o braço direito ao alto e de indicador em riste. O Michael Jackson está no primeiro andar, no princípio de uma carreira a solo, a ensaiar uma música à qual vai dar o nome de don´t stop till you get enough. Este som, que vem da janela de um velho prédio da baixa do Porto, começa agora a indavir as ruas, e não duvido que, um dia, vá conquistar o mundo. O mundo está a encolher a olhos vistos. Apenas um quarteirão mais acima, em Fernandes Tomás, o Woody Allen está no primeiro lugar da fila na paragem de autocarros, mesmo em frente ao Plaza. Tem as mãos nos bolsos, a cabeça levantada na direcção do telhado da igreja dos congregados, os óculos pretos em massa, no lugar do costume. Só a cor do cabelo destoa um pouco. É de um castanho uma pouco mais claro do que o normal. Isso e a roupa levam-me concluir que aquele Woody Aleen é o da década de 70. Vinte metros mais acima, a loja de instrumentos faz da montra um palco onde cabem a bateria, uma guitarra eléctrica, duas violas, uma concertina, o contrabaixo e os ferrinhos. Um dos tripés da exposição está vazio. É isso, falta o clarinete. Entro, pergunto e o dono diz que acaba de ser despachado por via marítima para Nova Iorque.Pode ter sido de ter dormido poucas horas de sexta para sábado. Mas já que estou acordado e é sábado de manhã e estou na baixa do Porto, o melhor é parar de fazer filmes. Deve ser do estômago vazio… Subo as escadas rolantes no interior de um centro comercial e é aí que trato de elevar esta tosta mista, onde misturo realidade e ficção, ao extremo. Não é que para lá de um muro baixo em acrílico transparente, o Leonardo Cohen desembrulha um bolo de arroz com mil cuidados, deslumbrado com a beleza do papel, mas também por causa da velocidade que a idade lhe autoriza os movimentos. Sim. A idade, com o tempo, dá ao corpo um limitador de velocidade. O Cohen foi o único a chegar aqui a esta história em tempo real. Talvez por isso permaneça sentado. A molhar o bolo de arroz no café e a lamentar a pequenez da chávena, enquanto que o Michael Jackson se despede dos músicos com um até sempre e o Woody apanha o autocarro, já a pensar que a viagem de avião o vai fazer chegar aos states muito mais cedo do que o clarinete. Quando o instrumento chegar aos Açores, ele afinal conseguiu acabar o argumento de mais um filme e começa a dizer em voz baixa que a viagem ao Porto talvez tenha sido uma perda de tempo porque já não vai ter tempo para músicas. O Jackson descansa em paz sem problemas de tempo. O Leonard Cohen consegue arranjar tempo para mais um bolo de arroz no Plaza. Ao atravessar a rua, a rapariga das calças de zebra mistura-se com a passadeira. Perco-lhe o rumo sem perceber se o tempo vai fazer dela uma super-mulher.