30.6.10

O esqueleto do morto

O que a seguir se relata é a autópsia de um gigante estendido ao comprido num relvado de futebol. Hora da morte: 21 horas e 24 minutos. Local: Cidade do Cabo, África do Sul.

No mundo inteiro passou a haver apenas bocas. Milhões de bocas com dentes de fora. Trincavam a pele, trincavam a carne, rasgavam os músculos, rasgavam as veias, bebiam o sangue. As bocas que já não eram bocas mas eram dentes vinham de todas as casas de todas as ruas, vinham dos parques de adeptos de futebol, vinham nos comboios, nos aviões e nos carros. Estavam no exterior do estádio, em todas os lugares sentados da bancada e nos lugares de pé. Estavam até dentro do balneário.
No dia da morte de uma equipa de futebol, o cadáver não tem tempo de chegar a ser cadáver. O tempo que o tempo precisa para estalar dois dedos é o tempo que o morto demora a ser transformado em esqueleto. Este é o da selecção portuguesa de futebol e ficou assim estendido num relvado africano:
Junto a uma das balizas está um crânio. O cérebro da equipa foi Eduardo. O guarda-redes foi guarda-redes e foi guarda-costas de toda a equipa. Uma, duas, três, quatro, cinco vezes. Vezes de mais. As vezes todas.
No lugar onde jaz o ombro direito da ossada esteve Ricardo Carvalho. Aquele ombro morreu sem dores. Dali não veio a causa da morte. Nem veio dali, nem veio do ombro esquerdo. No sítio do ombro esquerdo esteve sempre Bruno Alves.
Vamos aos braços do morto: do lado esquerdo, uma saúde de ferro, sendo esse o membro mais forte do corpo inteiro. No braço esquerdo, Fábio Coentrão esticava os dedos da "asa" até ao joelho e até aos pés. Ao passar a autópsia para o braço direito, não passamos, por que não há braço direito. Por aquele sítio andaram Paulo Ferreira, Miguel e Ricardo Costa. Foi como se não tivesse por lá passado ninguém. Escreve-se no bloco de notas que está no chão um corpo maneta.
No fundo da coluna vertebral, a zona pélvica está bastante desgatada. Foi ocupado por um jogador cansado, Pepe, e por outro sem rotinas do lugar em dez anos de carreira, Pedro Mendes.
Nos dois lados da bacia existem as marcas dos pitões de Raul Meireles, Tiago e duas ou três pegadas de Deco. O futebol transbordou algumas vezes a partir daquela região, mas não trasnbordou as vezes suficientes.
Este corpo só utilizou um joelho na passagem por África. Umas vezes na direita e outras vezes na esquerda, quase sempre com Simão e uns minutinhos com Danny, as pernas quase nunca flectiram como estavam obrigadas a flectir se o caminho era o tíutlo de campeão do mundo.
E chegamos aos pés. Um é lança-misseis e sabe de cor e salteado todas as ruas, vielas e avenidas de uma terra chamada fundo da baliza. O problema português também esteve no facto de esse pé não ter chegado a tocar chão africano. Esse pé foi Cristiano Ronaldo. No outro, houve momentos de ocupação terrena com Liedson e momentos de ataque em riste com Hugo Almeida. Nenhum garantiu passadas seguras, firmes e tranquilas.
A causa da morte de uma equipa encontra-se na soma de todas as partes. É hora de fazer o funeral ao morto. Sem colocar o treinador no papel de coveiro.

28.6.10

A estupidez azul do olhar

Existe um balcão, uma caixa registadora de costas para o cliente e um terminal de multibanco numa placa giratória, estacionado de costas para a empregada. Existe, do lado de quem compra, a espera oportuna pelo momento adequado para pedir o cartão da Fnac. E existe, do lado de quem está ao volante da máquina de calcular gigante, uma rapariga convencida de ser portadora de super-poderes por via de estar dentro de um colete verde com uma lista horizontal amarela.
- Já tem o cartão fnac?
- Não, mas quero ter.
- Dirija-se ali à minha colega.
- Obrigado.
Existe agora uma entrega voluntária de documentos a troco de um cartão cultural provisório que no futuro há-de ser permanente e garante a acumulação de verba suficiente para descontos. Documento vai, fotocópia vem e a super-mulher da banca exibe a certeza de estar a vender cartões como nunca ninguém antes o tinha feito. Temo que ela possa dizer a seguir que é a fundadora da loja. Mas não. Ela aponta o caminho da conversa na direcção azul da cor do olhos:
- Consigo tudo com estes olhos!
Exclamo a repetição que faço da frase dela porque ela tinha os olhos arregalados. Está bem eram azuis, mas não eram bonitos. Está demonstrado à evidência que no dia em que nasceu o céu caiu com toda a força e entrou na íris e fez uma ocupação vitalícia do terreno visível. Causou no entanto, essa queda abrupta, danos irreversíveis nas terras altas dos glóbulos oculares.
Hoje voltei à loja e lembrei-me da estupidez azul do olhar. E fui muito bem atendido por uma rapariga com olhos castanhos e um sorriso. Boa tarde.

17.6.10

A volta ao mundo em 25 dias (7)

Dia 7 -

Profissão - Não tarda, alteram-se os papéis. Domenech deixa o cargo de seleccionador francês e passa a ser jornalista. É o papel que lhe está destinado na peça Ferrailles e Chiffons, caso aceite o convite. Dizem os astros que a velha Gália está com muitas saudades de ter um treinador de futebol a fazer de treinador de futebol. O México nem precisou de rezar, como se faz na profissão de fé, para vencer uma França parada no campo e parada no tempo.
A profissão mais requisitada do dia foi a de massagista. Em três jogos houve três roturas musculares e três substituições forçadas. Por falar em três, vem Higuain à conversa pelo enorme talento com que desempenha a profissão de futebolista. Os golos não são como o ketchup. São de ouro, como o silêncio, terá de perceber o jogador profissional de clubes chamado Cristiano Ronaldo.

A volta ao mundo em 25 dias (6)

Dia 6 -

Museu - Emagrecido primeiro, e voltado a encher depois, Maradona faz de cada conferência de imprensa o concerto de uma banda drástica. Hoje veio mandar calar as críticas de Pelé e mandou o brasileiro voltar para o museu. Teve piada? Teve. Fez algum sentido? Não. Se esta Argentina for campeã, as federações de futebol do mundo inteiro podem passar a fazer prospecção de treinadores em manicómios.
Por falar em locais de culto com carácter expositivo... A Espanha andava a exibir o troféu de invencibilidade e entrou em campo com a taça de campeã da Europa de futebol na mão e esqueceu que relvado não é museu. Para a Suiça, tudo aconteceu na hora certa.
E para terminar este piscar de olhos ao mundial de futebol, uma pequena sugestão: não esqueçam Diego Forlán, bi-bota de ouro em clubes de segundo plano, no dia em os senhores da bola decidirem inaugurar um museu de futebol.

16.6.10

Os diários da bicicleta (5)

Breve dissertação matutina sobre o nobre mas não menos odioso acto de engomar. É como em tudo na vida: no princípio é tudo muito bonito, o problema vem depois. Ao fim de três ou quatro peças, ou então de uma única camisa, a piada evapora-se à exacta velocidade da água. A sensação de utilidade para o lar que invade um homem vai embora com a mesma pressa. No caso de ter a necessidade de justificar a preguiça através de algum outro factor mais desculpabilizante, desculpabilize-se com a poupança de electricidade.
Está neste ponto a conversa em que encontro uma saída airosa utlizando o recurso das energias limpas: o vento junto à costa do atlântico norte. Esta t-shirt está aqui e nem tem a noção de ter sido passada a ferro pela nortada no corpo de um homem aos pedais de um texto sobre as vantagens de uma bicicleta.

A volta ao mundo em 25 dias (5)

Dia 5 -

Incompetência - O Nelson Mandela Bay é o primeiro estádio da cidade feito para o futebol. Calhou lá se terem encontrado dois treinadores com elevados níveis de incompetência nesse mesmo desporto, a nível sénior, ao longo das últimas décadas. Selecções como a inglesa, sul africana, mexicana, portuguesa e clubes como o Real Madrid são folhas de serviço com o carimbo de reprovado para Carlos Queiroz e Sven-Goran Eriksson. As vitórias de um e de outro estão cada vez mais longe no tempo, a cada dia que passa. Costa do Marfim e Portugal demonstraram uma tremenda incompetência competitiva. Quem te medo de perder raramente consegue ganhar.
No final do encontro, Deco, que esteve em campo sem a competência desejável disse palavras certas sobre algumas opções do treinador. O problema é que as disse num local onde não tem competência para as dizer: em frente a câmaras de filmar e microfones.
Por último, incompetência também para os homens da FIFA. Eleger Cristiano Ronaldo como o melhor jogador do encontro é ver futebol com a nuca voltada para o relvado.

A volta ao mundo em 25 dias (4)

Dia 4 -

Angústia - Angústia já deu nome a um livro para dizer coitadinhos dos guarda-redes na marca de penalty. Se há lugar ou momento onde o guarda-redes não é nenhum coitadinho é o momento de uma grande penalidade, precisamente por não ter nada a perder. Sim senhor que está ali para dar o peito, mas só está a dar o peito a uma bala de couro. Nos penaltys, o guarda-redes só está a correr o risco de ser herói da partida, da competição, da nação ou do mundo.
Já se tentou rever esta história, colocando antes a angústia no pé do jogador que assume a marcação de um lance sem barreira a onze metros da baliza. Não me parece que angústia seja o termo mais certo para escrever nas costas de um homem que caminha desde meio campo com a obrigação de colocar a bola na rede.
Angústia, angústia sofre o jogador que pelo meio de qualquer volta infeliz num jogo de futebol, coloca, sem qualquer intenção de o fazer, a bola na própria baliza. Isso é que é angústia. Aconteceu ao dinamarquês Christian Poulsen, que abriu caminho ao triunfo da Holanda. Angustiante. E capaz de dar uma verdadeira dor de baliza.

A volta ao mundo em 25 dias (3)

Dia 3 -

Vermelho - E ao terceiro dia do mundial de futebol, caiu por terra uma teoria elaborada cá pelo nosso campeonato e ao longo dos anos por treinador português sem vergonha, segundo a qual é mais difícil jogar contra dez. Essa teoria foi assassinada em directo durante três vezes ao longo do dia, em três estádios diferentes. Ghezzal, Lukovic e Cahill foram expulsos nas selecções da Argélia, Sérvia e Austrália. Em superioridade numérica, a Eslovénia, o Ghana e Alemanha venceram os encontros, com maior ou maior dificuldade. Retomando o raciocínio inicial, os três resultados foram para vários treinadores portugueses corarem de vergonha. Em onze contra dez, quem tem onze tem mais condições para fazer uma trabalho competente. Se não o faz, pode ser por azar ou por incompetência. E nunca pelo facto de o adversário ter ficado mais forte a jogar com menos.

14.6.10

A volta ao mundo em 25 dias (2)

Dia 2 -

Panturrilha - Panturrilha em vez de deus. Mesmo que deus tenha regressado aos campeonatos do mundo de futebol. Mesmo que deus esteja a treinar o sucessor de deus. E panturrilha em vez do frango sofrido pela Inglaterra. Isso eram coisas à espera de acontecer. Maradona é o seleccionador argentino e com a qualificação no bolso tinha de regressar. E a Inglaterra mandou para dentro de campo um guarda-redes com aviso de recepção, como o nome nas costas a dizer Verde. É a mania da superioridade de quem anda sempre a dizer que os americanos não percebem inglês.
Escolho panturrilha como palavra passe do segundo dia do campeonato do mundo, porque panturrilha foi a única coisa que surpreendeu nesse dia. Vinha num jornal que o veterano Véron estava a precisar de descanso por causa de uma dor na panturrilha. Panturrilha aqui não existe, mas noutras partes do globo quer dizer barriga da perna. Descanso e massagens devem resolver o problema. Não pode é Maradona ser o massagista. Ele tem sempre o terço numa das mãos. Será na do golo à Inglaterra em 1986 ou na do episódio em que saiu de mão dada com uma enfermeira para o controlo anti-doping em 1994? Neste mistério da fé estará o sucesso da Argentina na África do Sul. Esteja como estiver a panturrilha de Juan Sebastián Verón.

A volta ao mundo em 25 dias (1)

Dia 1 -
Tshabalala - O nome pode ser cantado sem o menor esforço no refrão de uma música pop, em grupo, num teatro, num pavilhão, ou num estádio, como quem grita um golo. A ajudar à festa, o clube onde joga o homem que marcou o primeiro golo no mundial da África do Sul tem o nome de um grupo de rock: Kaizer Chiefs.
Com o refrão à mão de levar à boca e com uma banda no palco, de estranhar seria se não houvesse espectáculo. Foi como se o destino estivesse escrito nas estrelas. Sthiphiwe Tshabalala quando era demasiado velho para ser das camadas jovens e demasiado novo para entrar no futebol dos adultos foi emprestado pelo Kaiser Chiefs ao Free Stars. Cresceu e tornou-se num dos melhores jogadores dos Kaizer Chiefs. Estava a seguir o caminho certo e por ali foi parar à selecção da África do Sul. Estava a meio do jogo 50 Bafana-Bafana quando abriu a asa esquerda e fez a bola voar até a um dos dois sítios da baliza onde é possível fazer ninhos. E ali nasceu um herói nacional.
A história dava para escrever a letra de uma música rock. Não a deixaremos terminar sem antes esclarecer que é a banda que tem o nome de um clube de futebol sul-africano. Nos anos noventa, uns putos de Leeds veneravam o capitão Lucas Radebe. Isso tudo: Radebe é sul-africano e tinha sido contratado pelo Leeds ao Kaizer Chiefs. O mundo é pequeno. Do tamanho de uma bola.

Os diários da bicicleta (4)


Com vontade de apanhar pelo caminho o domingos aos bocados, fiquei-me pelo processo de intenções, esbarrando o nariz na porta de correr da garagem na cave do prédio. Como em tudo da vida, foi uma questão de chave. Ou se tem e uma porta é uma página nova de um livro por onde se entra ou ao qual se regressa, ou então não se tem e a porta passa a ser uma criatura de ideias fixas, disposta a não nos deixar seguir para lado algum.
Ontem à noite a chave de casa ficou esquecida em cima da secretária, no espaço entre o monitor e o teclado. Ela fica sempre ali, porque desconfio que gosta de ler e de estar atenta às notícias. Para informação delas, as chaves, lhes digo do facto de que à conta de terem passado a noite no cibermundo, ao início desta tarde fui obrigado a guardar meias, sapatilhas, camisola e calções porque a bicicleta estava para lá de uma das tais portas de ideias fixas.
O regresso à estrada de amanhã não passa. Com passadeira vermelha estendida e tudo.

13.6.10

O amor dança aos pares

Quero bilhetes para dois lugares na fila frente, ao centro. Quero entrar nesse teatro antes da hora. É para ensaiar. Não, não sou actor, nem bailarino. Quer dizer às vezes sim. Sim o quê? Os dois. Bilhetes? Não, actor e bailarino. Sei chorar quando penso que o dia vai doer muito. E também sei fazer de conta que não sei de nada disso e saio de casa com dois braços bem educados e um par de olhos felizes. Digo-lhe de resto que a minha parte de bailarino vem precisamente daí. Do sítio onde as lágrimas se escondem no segundo em que as pálpebras abrem e as pálpebras fecham, fazendo as duas o paso doble e claro que isto tudo só se passa nas vezes em que a vida é uma tourada.

Quero dois bilhetes para ver a loucura de perto. Aproximem o espelho. Consigo ver nele um palco. E no chão do palco vejo os meus pés dentro dos sapatos oferecidos pelo mágico que se cansou de olhar para a cartola e de esperar que amor de lá saísse no próximo truque. Deu-mos no dia em que se reformou e morreu sem saber que o amor a meio da magia se tinha divido em dois e estava há décadas perdido nos atacadores destes sapatos pretos. Os bilhetes são para ver os dois lados do amor. Era de se lhe tirar o chapéu, se o amor fizesse dançar uma perna e depois a outra. E tomasse conta do movimento das ancas.


12.6.10

A história da vida de um disco

A música Fake Plastic Trees entrou na minha vida pela porta do lado esquerdo do meu Fiat 127 azul escuro. Estava escondida dentro de uma cassete BASF preta, onde eu tinha gravado, por milagre, o The Bends de uma ponta à outra, sobre uma fita com a história dos anos 80, uma fita com gravações e re-gravações de jogos do ZX Spectrum.

Nesse dia tinha acordado cedo. Apanhei o autocarro da Sequeira, Lucas & Venturas para poupar dinheiro porque tinha o passe. Demorei duas horas e ir ao e a vir do Porto. Tinha gasto quase todo o dinheiro que tinha juntado nos meus anos. A viagem de regresso a Serzedo foi como se estivesse a regressar da Nova Zelândia: o cd The Bends ardia-me nas mãos. Li e reli a capa e contra-capa. Fiquei feliz por não ter saído na noite anterior e por ter poupado mais um dinheirinho com isso. Tinha dormido bem, estava fresco e ainda me tinha sobrado um nota de mil escudos e outra de quinhetos, como resultado dos cinco contos que tinha levado no bolso para o Porto.

O Fiat 127 foi durante uma fase da minha vida o meu relógio, o meu controlo emocional, o meu destino: saía à hora em que ele decidia pegar, aguentava-me à bronca que era o remédio e chegava onde ele decidia parar. Nesse dia fez-me as vontades todas. Arrancou quando eu quis, ouviu o disco comigo e por vezes acho que só não foi abaixo porque estava a cantar comigo e com o leitor de cassetes.Não muito longe casa, já estamos, eu e o carro, mais do que saciados quando começa a ser possível perceber que High and Dry está a chegar ao fim. Valeu! Valeu por tudo, valeu pelos três contos e quintentos em 1995, valeu pela viagem de camioneta ao Porto, valeu por ter ido e voltado a pé da discoteca à paragem dos autocarros.

O silêncio não deve ter demorado 5 segundos. A seguir veio Fake Plastic Trees… fui nadar e conseguia respirar debaixo de água. Pensei ter sido sugestão da capa do disco, mas não era. Cada acorde proporionava uma braçada para diante. Cada palavra dizia os segredos todos do fundo do mar. E depois havia ainda mais ao fundo uma luz que parecia verdadeiramente uma luz, mas não era, era o mundo. E a profundidade do mar tinha sido o regresso à barriga da minha mãe. E quando tudo parou, ali estava eu: um rapaz sentado num FIAT 127 , de frente para a praia num dia chuva com os dois vidros abertos. Certo de ter acabado de nascer. E quis nascer de novo. E voltei a puxar a fita atrás.

10.6.10

Confissões africanas

O meu mundial de futebol morre na praia antes do lugar onde as dunas nascem.
Este jogo faz de conta que tem noventa minutos. A diferença é que este está parado no tempo. A baliza não tem redes, o campo não tem bola, as dunas não são bancadas nem as bancadas têm gente. Então os jogadores não têm público. O mar está autorizado a deixar de fazer o papel duplo de balneário e de sala de massagens. As poças de água no chão são as lágrimas da areia, em depressão por não a deixarem ser verde como a relva pelo menos durante um dia. Sem campo, nem redes, nem povo, um jogador futebol não é um jogador é um homem. E um homem sem bola é capaz de não conseguir driblar os obstáculos construídos pelo jogo da vida.
O árbitro foi o primeiro a ser avisado de todas as circunstâncias e decidiu ficar em casa. Sem o apito, vai ser preciso recorrer ao estrondo de um ponto final para terminar este encontro.
[photo @ VNGaia]

9.6.10

Os diários da bicicleta (3)

A crónica da etapa de hoje da volta à vida em bicicleta começa em Nantes. Não fui a França. A França veio até mim. Dentro um iphone, dentro de um disco, dentro da criatividade de um grupo chamado Beirut. E fica a parecer uma matrioska, a cena destinada a contar a música com que me fiz à estrada por cima da sopa do almoço. Distraído com o facto de o texto se ter entretanto transformado numa salada russa, levei com um pé de água na cara, primeiro, a seguir nos ombros, depois nas pernas e em todo o corpo em poucos segundos. Coloquei a hipótese de partir aquela cara (feia) com que o tempo decidiu sair à rua, concluindo de imediato que não se bate numa tromba de água.


A morte do artista

Ia sonhar que fazia um álbum. Editava o disco, dava um concerto e morria à noite durante o sono quando ainda conseguia ouvir palmas. Afinal era terra sobre o caixão, era ele a cair no esquecimento, encolhido no interior de veículo de madeira sem marcha atrás e que não tinha lugar do morto, mas que transportava as pessoas em piloto automático para o fim, que é como quem diz: quando a terra estava toda posta em cima, era uma vez.

Os diários da bicicleta (2)

O Belmiro nunca foi nunca foi meu avô. Comecei a saber da existência dele em casa da minha avó Emília. Havia fotografias a preto e branco com molduras ovais. Fotografias onde ele fazia pose e sustinha a respiração. Tinha cara de ser um um homem de bem. Um dia encontrei numa velha arca da sala, do tempo em que havia arcas de madeira em todas as casas, um chapéu de polícia. Não era do meu pai. Não era do meu tio. E de certeza que não era da mãe nem da minha avó. Só podia ter sido do Belmiro. Na minha ideia o Belmiro tinha sido polícia.
Sentado no soalho de madeira, acompanhado pelo cheiro da madeira com bicho, retirei da arca um cartão com uma fotografia igual às outras fofografias do Belmiro, muito quieto, muito senhor de si. O cartão dizia Bombeiros Voluntários da Aguda. Com aquele chapéu imaginei logo o Belmiro como o comandante dos bombeiros. Li com mais atenção e vi que o Belmiro era o cobrador.
A família inteira lá me foi explicando que o Belmiro era o meu avô e quando perguntava por ele a facção extremamente católica da família, a minha mãe e a minha avó Emília, respondia que o senhor o tinha chamado para o céu. Eu acho que disse que também queira lá ir.
Soube dos detalhes da morte do Belmiro uns anos mais tarde. Ela tinha uma bicileta preta com um assento largo de couro castanho. Era uma bicicleta como as bicicletas todas daquela zona e daquele tempo. Imagino que também tivesse uma pasta em pele com o livro das cobranças e uma régua de metal para cortar as cotas. O Belmiro morreu em 1965, quando fazia o traballho voluntário para os bombeiros da Aguda. Ia na bicicleta e foi abalroado por um carro na EN109. O carro fugiu e nunca soubemos quem matou o meu avô. Eu nasci quase dez anos mais tarde. Por isso digo que ele nunca teve a oportunidade de ser avô de um rapaz chamdo António.
Peguei na bicileta à meia noite. Vesti um colete florescente e desci sem luz e sem mãos nos travões a estrada que vai atè à Granja. Entrei na EN 109, passei a estação dos comboios e cheguei até perto do cruzamento onde hoje há um semáforo e onde me disseram que o meu avô Belmiro tinha morrido. A estrada é muito movimentada a qualquer hora do dia. Durante todo o percurso não passou nenhum carro por mim, em nenhum dos sentidos. Gosto de pensar que avô Belmiro estava a olhar por mim. Olhei para cima e disse: olá, eu sou o António. Sou teu neto.

7.6.10

Os diários da bicicleta (1)

Os pedais levam os olhos à freguesia onde a mãe vive. Ao descer em direcção à casa da família, o antigo habitante de Serzedo, quanto mais pedala para a frente, mais viaja para trás no tempo. E ao descer o paralelo, empedrado para quem quiser, da rua 25 de Abril ele está aqui e está com dez anos e vai com mais dois miúdos na mesma bicicleta e vão cair os três e aquele que agora pedala sozinho recorda o momento em ficou a saber que tinha escroto e que se a manete do travão direito tivesse perfurado um milímetro a mais, ele um dia não iria poder ter filhos.

Como qualquer bom filho que a casa torna, este que regressa ao final de uma tarde de domingo vai levar um "dvd" para a mãe colocar no leitor do autocarro que há-de partir de Serzedo em direcção a Torremolinos na madrugada desta quarta-feira. Que filmes levou o filho? "As Confissões de Schmidt", com o Jack Nicholson, sobre um viúvo numa autocaravana à procura de um rumo na vida, e a "Vida é Bela", com o Roberto Benigni, sobre a segunda guerra mundial e os campos de concentração, para onde as pessoas eram transportadas em grupo e com os pés nos pedais da bicicleta aquilo tudo começou a parecer uma má escolha para quem vai em excursão. Mas chega de autocarros.
Mudo muito pouco de assunto. Saio do autocarro para me concentrar no camião de um vizinho que é motorista de longo curso. A carroçaria é da cor do vinho tinto. Tem letras amarelas a dizer Eleutério. Fico a pensar se um homem que passa tantos meses fora da porta, não começa a ler adultério ao fim de uns tempos e se aquele patrão não é afinal uma mensagem subliminar. Só o subsídio de desemprego pode salvar aquele casamento. Vamos mudar o meio de transporte. Mas vamos mudar pouco: do camião para a autocaravana. O condutor é o Jack Nicholson, nas "Confissões de Schmidt", e o condutor vai tentar impedir o casamento da filha. Olho pela última vez para o camião do Euleutério e volto a mudar de veículo. Da autocaravana para a bicicleta. Sem filmes.

4.6.10

Graças a deus

Deus é muito bom a escolher fatos. A ser verdade que ele está em todo o lado, então em todo o lado há um homem com charme e a ser verdade que em todo o lado há um homem com charme não é menos verdade então que em todo lado há uma mulher à espera de ser amada como nos filmes a preto e branco.
Deus veio na cauda de um enxame, já diz a música, e mal chegou pegou num copo de vinho e deciciu dançar. Dança bem, para quem anda no mundo desde o início dos dias. E que não venha com coisas, porque aquela pose de quem está sentado sentado ao balcão só é conseguida por quem já passou noites sem fim a ver a vida no fundo de um copo, à espera de falar com deus. Neste caso, a falar com ele próprio. Louvado seja deus.
Sobre a arte individual de usar um colete como peça do vestuário masculino, há só a dizer o seguinte: é coisa para não se fazer, porque não está ao alcance dos comuns mortais.
No resto deste projecto a dividir em partes iguais aulas de música e pela estudos teológicos, confirma-se que uma mentira repetida muitas vezes chega a ser verdade: ele tem barba. E voz de deus.

The National - Bloodbuzz Ohio

Os bastardos do ditador

Abandona a praça de touros. Vira à direita, vira à direita, vai sempre em frente, passa a rotunda, segue em frente. Entra na estrada e encontra a marcha lenta. Oito carros à frente chegam criar um fila de quilómetros em poucos minutos. A ligação entre o Viana do Castelo e o Porto passa a ser num instante o gargalo entalado de uma garrafa. Não vai mais vinho para aquela mesa. A do canto. Isso, essa, a dos três senhores serventes na obra do Joaquim. É que eles são de fora e ainda devem muitos quilómetros à estrada.
Os três estão agora como nós todos, aos milhares, empatados a zero quilómetros por hora no asfalto da A28. A A28 mudou de nome, antes era IC1, e está à beira de oficializar a mudança de sexo, mas para tal é preciso dinheiro e para ter dinheiro e para ter dinheiro mandaram construir portagens na entrada e na saída da senhora.
Nós entretanto fomos transformados em caracóis e seguimos viagem devagarinho no dorso de asfalto do travesti inventado pelo governo. Mas vamos voltar aos três especialistas na arte de servente, deslocalizados em Viana do Castelo. Eles estão na carrinha aqui ao lado. O mais velho tem o cabelo a ficar branco, a cabeça a ficar impaciente com a demora e o juízo a ficar louco. Vem com o pescoço esticado para fora da janela a dizer que o protesto é uma vergonha e o que é preciso é um Salazar.
Falta muito para chegar ao Porto. O episódio repete-se. A democracia liberta a opinião, os lesados queixam-se do males que os conduzem ao papel de injustiçados e vem logo a seguir um fiel (tipo cão de fila) seguidor da ditadura. A este ocasional filho de Salazar, para não ter de lhe chamar filho de outra, convém lembrar que nos dias do coveiro da nação, ir de Viana do Castelo ao Porto era coisa para demorar umas cinco horas, ou até mais. A marcha lenta, se tivesse ido sempre a 40 quilómetros por hora, que não foi, só teria demorado duas horas. Afinal o tamanho "incómodo" da democracia é bem mais passageiro do que a perfeição ordeira do tempo do outro senhor. E o bastardo do ditador, lá chegou mais cedo a casa, no regresso do trabalho, mesmo tendo que aturar a insuportável velocidade do barulho da liberdade.

1.6.10

Conflito internacional

Parece que acabou de sair de uma fita de VHS. Estou a ver a mulher a caminhar na direcção do mar e a minha cabeça, pudesse lá ser de outra forma, já está a realizar o filme todo. A república sul do bikini, também conhecida por cueca, está muito para lá do paralelo 38, também conhecido por anca, e se lhe dessem um pouco mais de pano, a senhora segurava a cueca nos ombros. A república mais a norte do bikini, internacionalmente reconhecida por top, combina com a cueca como o charme feminino combina com pêlos debaixo dos braços de uma mulher. Estamos então perante um fato de banho politicamente instável. Aquele bikini é as duas Coreias. A mulher que o veste não casa com nada, nadinha de nada, quando a caminho do mar numa praia do mundo digital.

O último cantor de charme

O melhor do Porto é capaz de ser a voz do Reininho. Nunca nenhuma boca antes, nem nunca nenhuma boca depois, conseguiu ir, e foi, pelas ruelas de pedra da cidade junto sítio onde o rio acaba e o mar começa. Sem medo das ondas. Sem reclamar betão para proteger das vagas. Ele começou antes do tempo dos paredões e saiu das dunas como se estivesse a sair todo nu, com aquela voz que mais ninguém tinha, com aquela voz que mais ninguém teve.
No século anterior ao século do casamento entre as pessoas do mesmo sexo, o Reininho já casava nos textos as palavras homossexuais, palavras que nunca se tocariam na métrica dos poetas e dos trovadores anteriores, mas que nos cadernos dele nasceram e dos cadernos dele foram conquistando o país inteiro, com a força de um Afonso Henriques, mas com a graça de uma rapariga pronta para a colheita.
O melhor do Porto é a voz do Reininho. É o palco onde ele surge, esguio ao microfone, de colarinhos moles ao pescoço, com as calças curtas e os tornozelos com vontade de espreitar a plateia. O melhor do Porto é a alegria da músicas antigas. É uma voz rouca. Aguda. À beira de uma ataque de verbos. É o som das letras do último cantor de charme em português.