30.6.10

O esqueleto do morto

O que a seguir se relata é a autópsia de um gigante estendido ao comprido num relvado de futebol. Hora da morte: 21 horas e 24 minutos. Local: Cidade do Cabo, África do Sul.

No mundo inteiro passou a haver apenas bocas. Milhões de bocas com dentes de fora. Trincavam a pele, trincavam a carne, rasgavam os músculos, rasgavam as veias, bebiam o sangue. As bocas que já não eram bocas mas eram dentes vinham de todas as casas de todas as ruas, vinham dos parques de adeptos de futebol, vinham nos comboios, nos aviões e nos carros. Estavam no exterior do estádio, em todas os lugares sentados da bancada e nos lugares de pé. Estavam até dentro do balneário.
No dia da morte de uma equipa de futebol, o cadáver não tem tempo de chegar a ser cadáver. O tempo que o tempo precisa para estalar dois dedos é o tempo que o morto demora a ser transformado em esqueleto. Este é o da selecção portuguesa de futebol e ficou assim estendido num relvado africano:
Junto a uma das balizas está um crânio. O cérebro da equipa foi Eduardo. O guarda-redes foi guarda-redes e foi guarda-costas de toda a equipa. Uma, duas, três, quatro, cinco vezes. Vezes de mais. As vezes todas.
No lugar onde jaz o ombro direito da ossada esteve Ricardo Carvalho. Aquele ombro morreu sem dores. Dali não veio a causa da morte. Nem veio dali, nem veio do ombro esquerdo. No sítio do ombro esquerdo esteve sempre Bruno Alves.
Vamos aos braços do morto: do lado esquerdo, uma saúde de ferro, sendo esse o membro mais forte do corpo inteiro. No braço esquerdo, Fábio Coentrão esticava os dedos da "asa" até ao joelho e até aos pés. Ao passar a autópsia para o braço direito, não passamos, por que não há braço direito. Por aquele sítio andaram Paulo Ferreira, Miguel e Ricardo Costa. Foi como se não tivesse por lá passado ninguém. Escreve-se no bloco de notas que está no chão um corpo maneta.
No fundo da coluna vertebral, a zona pélvica está bastante desgatada. Foi ocupado por um jogador cansado, Pepe, e por outro sem rotinas do lugar em dez anos de carreira, Pedro Mendes.
Nos dois lados da bacia existem as marcas dos pitões de Raul Meireles, Tiago e duas ou três pegadas de Deco. O futebol transbordou algumas vezes a partir daquela região, mas não trasnbordou as vezes suficientes.
Este corpo só utilizou um joelho na passagem por África. Umas vezes na direita e outras vezes na esquerda, quase sempre com Simão e uns minutinhos com Danny, as pernas quase nunca flectiram como estavam obrigadas a flectir se o caminho era o tíutlo de campeão do mundo.
E chegamos aos pés. Um é lança-misseis e sabe de cor e salteado todas as ruas, vielas e avenidas de uma terra chamada fundo da baliza. O problema português também esteve no facto de esse pé não ter chegado a tocar chão africano. Esse pé foi Cristiano Ronaldo. No outro, houve momentos de ocupação terrena com Liedson e momentos de ataque em riste com Hugo Almeida. Nenhum garantiu passadas seguras, firmes e tranquilas.
A causa da morte de uma equipa encontra-se na soma de todas as partes. É hora de fazer o funeral ao morto. Sem colocar o treinador no papel de coveiro.

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