7.6.10

Os diários da bicicleta (1)

Os pedais levam os olhos à freguesia onde a mãe vive. Ao descer em direcção à casa da família, o antigo habitante de Serzedo, quanto mais pedala para a frente, mais viaja para trás no tempo. E ao descer o paralelo, empedrado para quem quiser, da rua 25 de Abril ele está aqui e está com dez anos e vai com mais dois miúdos na mesma bicicleta e vão cair os três e aquele que agora pedala sozinho recorda o momento em ficou a saber que tinha escroto e que se a manete do travão direito tivesse perfurado um milímetro a mais, ele um dia não iria poder ter filhos.

Como qualquer bom filho que a casa torna, este que regressa ao final de uma tarde de domingo vai levar um "dvd" para a mãe colocar no leitor do autocarro que há-de partir de Serzedo em direcção a Torremolinos na madrugada desta quarta-feira. Que filmes levou o filho? "As Confissões de Schmidt", com o Jack Nicholson, sobre um viúvo numa autocaravana à procura de um rumo na vida, e a "Vida é Bela", com o Roberto Benigni, sobre a segunda guerra mundial e os campos de concentração, para onde as pessoas eram transportadas em grupo e com os pés nos pedais da bicicleta aquilo tudo começou a parecer uma má escolha para quem vai em excursão. Mas chega de autocarros.
Mudo muito pouco de assunto. Saio do autocarro para me concentrar no camião de um vizinho que é motorista de longo curso. A carroçaria é da cor do vinho tinto. Tem letras amarelas a dizer Eleutério. Fico a pensar se um homem que passa tantos meses fora da porta, não começa a ler adultério ao fim de uns tempos e se aquele patrão não é afinal uma mensagem subliminar. Só o subsídio de desemprego pode salvar aquele casamento. Vamos mudar o meio de transporte. Mas vamos mudar pouco: do camião para a autocaravana. O condutor é o Jack Nicholson, nas "Confissões de Schmidt", e o condutor vai tentar impedir o casamento da filha. Olho pela última vez para o camião do Euleutério e volto a mudar de veículo. Da autocaravana para a bicicleta. Sem filmes.

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