11.10.10

escrever um livro como quem anda a pé

um pouco mais do que já está feito

"Escreveu o disco é da cor das dores invisíveis. Os funerais estão cheios de discos calados, discos que se falassem não falavam, cantavam músicas com notas graves ao piano.
A agulha ao calcar o disco, antes de chegar ao som, faz o barulho de pés no chão, das solas dos sapatos de homem nos paralelos, faz a reprodução do barulho das solas e dos tacões nos paralelos e nas pedras vadias dos intervalos dos paralelos do cemitério. Ellis tomou nota do entendimento dos factos e antes da agulha ter chegado ao som, chegou com as mãos ao caderno, com a mão direita ao lápis, com o lápis à folha, chegou com falta de ar à história e a história passou a dizer o princípio de uma música é a última morada. O primeiro acorde, a primeira estrofe, venham juntos, venha um de cada vez, no segundo em que dizem bom dia estou aqui estão a dar a extrema unção ao silêncio, a ligar para a agência funerária, a discutir o preço do serviço, o número de velas, o molho de flores, a qualidade da madeira, a cor do caixão, o latão ou o ouro das pegas, estão a abrir a cova, a descer a urna lacrada, a mandar uma flor contra a cruz de liga de metal, a mandar outra, a atirar terra para cima, com a mão, com as pás, a cobrir o corpo, a dizer até sempre, a cobrir as lágrimas, a desejar paz ao subterrâneo, a caminhar de costas para o morto e de frente para o vazio. A agulha chegou ao disco. A bateria foi a primeira a chegar, aos solavancos, com os passos trocados. Não deixava de ser agradável. Só não deixava de ser da cor dos discos. Vinha às apalpadelas, sem saber do que sofria, escreveu. As pálpebras fechadas pintam os olhos de preto. Já estava a sonhar e os sonhos nunca chegam ao papel no formato original."

começa assim e vai acabar dentro de seis meses

O plano caiu em cima da cabeça, colocou reticências, apagou, escreveu o plano caiu dentro da cabeça, escreveu o plano caiu dentro da cabeça tendo chegado sem aviso com a velocidade de uma bala. Pôs um ponto. Escreveu sobre a arma para dizer detalhe nenhum sobre a proveniência do projéctil, sobre o calibre, o peso, a cor ou o tamanho. Escreveu é provável que a arma tenha existido, quer dizer a arma existir existiu e existe, se bem que não haja uma testemunha para amostra, porque a bala caiu dentro da cabeça vinda de um destinatário desconhecido e de um destino da mesma sabedoria. Escreveu não houve dedo mas houve gatilho, o sentido figurado foi o detonador numa pistola invisível, mas que talvez fosse do tom do cobre e da madeira, que é de bom tom apesar de ser uma pistola, e era pesada pois uma pistola leve não dispara uma bala assim. Escreveu uma bala assim chega sem se saber de onde, ocupa o espaço, enche o vazio, fertiliza uma ideia, abre um caminho, acende uma luz e mesmo que tudo seja em sentido figurado, faz sentido, faz figuras, cria linhas, escreve frases, enche um livro.
Escreveu que há cinco minutos não tinha nada, uma saída, um caminho, uma pista, tinha linhas por onde seguir, não tinha pano para mangas, mas tinha páginas para letras, tinha tinta, ia comprar mais tinta e em vez de pintar uma casa, desenhava o esboço de uma dança, escrevia um romance. Escreveu mais tinta para fixar as ideias, ia pedir dinheiro emprestado à senhora Ferguson, não lhe ia dizer para quê, quer dizer ia dizer para tinta, ia dizer para o depósito de gasolina da motorizada, ia dizer para outra coisa se ela não acreditasse e pensar na outra coisa a caminho de casa da senhora Ferguson e ia ter meia hora para pensar porque decidira ir a pé. Escreveu andar a pé é uma forma ecológica de andar para a frente, a menos que se esteja a caminhar para a trás e a minha vida a andar para trás já andou, mas agora não porque uma ideia caiu dentro da minha cabeça e eu agora tenho um plano.

Quando parou de escrever pousou o lápis de madeira em cima do tampo da secretária de madeira, tirou uma farpa do dedo indicador da mão direita, virou a folha do bloco até o bloco ter ficado fechado. Pegou no chapéu de fazenda que era cinzento e agarrou um casaco comprido de tecido sintéctico omni-tech que era preto. Pegou num guarda-chuva cuja história dava para escrever um livro, ou um capítulo de um livro, e que ele uma dia escreveria, guarda-chuva que era comprido e que era preto. Deslocou-se no interior da casa pela sala, onde estava, até à casa de banho, onde urinou, até cozinha, onde pegou numa maçã verde, até ao hall, onde se viu ao espelho, até à porta da rua, por onde saiu. A rua era uma homenagem conservada no tempo à Rainha Vitória. Era uma rua mas também era um quadro, porque era um lugar bonito para desenhar com a calma de um pintor idoso e para colocar dentro de casa em cima da lareira ou porque não na parede ao lado da mesa de jantar. A rua que também era um quadro também era um relógio visto de dentro da janela da cozinha. Às seis da manhã vinha o pão, às seis e meia vinha o leite e às sete o jornal. Às sete e meia havia centenas de pés, dezenas de carros, pessoas em marcha no sentido do trabalho. Às dez vinha o carteiro e a essa hora vinham as viúvas para as janelas e por volta dessa hora vinham os velhotes viúvos, em absoluta minoria, para a rua e foi por volta dessa hora que Ellis Parker desceu os três degraus, virou à direita no passeio e se sentou na última vaga do banco da paragem do eléctrico. Subiu quando o eléctrico chegou com as golas do casaco levantadas, desceu-as ao sentar-se numa fila da ponta traseira, encostado à janela. Pelo caminho viu outros quadros com os quais podia facilmente decorar as assoalhadas todas lá de casa. Saiu deste pensamento quando a mão esquerda fez puxar o fio de cabedal e o fio de cabedal fez tilintar o sino e saiu do eléctrico e por sorte a paragem era mesmo em frente à loja de discos.
Entrou na loja de discos como quem recupera de um estado de coma, sentia com o nariz o faro da letra “T”, deixou-se levar pelo cheiro e guiou-se com olhos. The National era o que estava escrito na capa preta de um disco a preto e branco. The National estava escrito a amarelo. Por baixo cinco letras brancas diziam Boxer. Ia pegar no disco, pagar o disco, sair dali com o disco, viajar de eléctrico com o disco, chegar a casa com o disco, colocar o disco no gira-discos, ouvir o disco, sentar-se a ouvir o disco, pegar no lápis a ouvir o disco e escrever um romance a ouvir o disco. Escreveu na folha tudo que tinha acabado de fazer.

Não tinha de ser

Lembro-me de ter dormido com as chuteiras aos pés da cama, por cimas dos cobertores, com a colcha branca de renda feita pela minha mãe puxada para trás para não a sujar. As chuteiras pretas com sola preta de pitões de borracha e duas tiras brancas no peito do pé eram minhas desde o meio-dia, a hora em que as  troquei por uma nota de quinhentos escudos na feira de Espinho. Durante a tarde fui à garagem do meu pai, com cuidado para não riscar o carro, e peguei na lata de tinta preta e num pincel. Sentei-me no chão de cimento, peguei nas chuteiras e pintei as tiras brancas de preto, com cuidado para não riscar de preto a tinta branca da chapa do carro. Tinham tempo para secar, as chuteiras, até porque a estreia no pelado do parque de jogos da Rainha, com a camisola do Serzedo estava marcada para as cinco da tarde de amanhã, um sábado de verão de 1985.
Por esses dias, um goleador brasileiro do Fluminense  chegava ao FC do Porto, e apesar de goleador, tinha o lugar tapado por duas botas de ouro nos pés do Gomes. O brasileiro chamava-se Paulinho Cascavel e acabou recambiado para Guimarães, envolvido no negócio do guarda-redes dos juniores, um puto de bigode chamado Best, que devia ser o melhor do Brasília e do Dallas e pouco mais.
Ao longo da épocas seguintes o Cascavel marcou sempre mais golos do que eu, mas ele tinha a vantagem de jogar na relva, a ponta de lança ,com chuteiras adidas, numa equipa que jogava ao ataque, enquanto que eu variava da esquerda para a direita nos campos pelados de Vila Nova de Gaia com as chuteiras da feira de Espinho, esfoladas no osso do dedo grande e com terra por baixo das meias na sola do pé.
Um dia, era eu mariola dos juvenis, onde fazia com simplicidade a posição 10, e vejo na primeira página da Gazeta dos Desportos o Paulinho Cascavel com a camisola do Sporting. Eu continuava com as listas horizontais, a azul e branco do Serzedo, mas tinha por dentro, no coração as cores da camisola do Paulinho. Está na história do futebol português: ele continuou a marcar mais golos do que eu.(outro da do histórico: alguns miúdos jogavam de buço por causa dele).
No último sábado havia a hipótese de jogar de igual para igual com ele pela primeira vez na vida. Os dois no mesmo relvado, com chuteiras parecidas, embora ele continuasse com a vantagem de jogar mais perto da baliza. Para isso era preciso que o Serzedo vencesse o Canelas e que o Guimarães ganhasse à Académica. Assim foi.
O tão esperado encontro dentro das quatro linhas estava marcado para a tarde do último Sábado., num jogo de veteranos. Ele jogou e marcou um golo. Eu fiquei em casa com a rótula partida. Como no resto da história, vantagem para o Paulinho Cascavel. Foi por pouco que não nos encontramos em campo. Estava escrito que não tinha de ser.

Última chamada com destino ao verão.

Reina sobre os restantes barulhos o barulho do cumprimento das folhas, passou bem como está, de quatro árvores esta tarde apresentadas ao Outono. A tropa verde de cada um dos ramos estava à espera de travar conhecimento com um personagem mais velho, mais distante, mais frio e mais cinzento. O outono esclareceu que no princípio é tudo muito bonito e nem ele, dono e senhor da tendência de uma estação do ano, resiste à beleza sedutora dos instantes iniciais e como tal apresentou-se aqui à porta como quem vem do verão. Quente, ensolarado e companhia agradável para o barulho sossegado das folhas verdes das quatro árvores para lá do muro com meio metro de altura, e que agora falam com a água ligeiramente quieta e eu observo, estacionado na beira da piscina, aleijado numa perna pelas brincadeiras de verão, observo a vagareza do estado natural das coisas e me preparo para meter conversa com os raios do sol.

O 58º Festival de Cinema de San Sebastian

Na portada electrónica do El País, Diego Luna, actor mexicano, veste um fato cinzento escuro da cor da noite em Nova Iorque, sorri por entre a barba ainda mais escura e segura as mãos de John Malkocivh. John Malkovich, actor estado-unidense, tem um fato bege claro parecido com o fato branco de quando faz de deus no anúncio da Nespresso, que por sua vez é igual aos fatos dos homens da noite na cidade do México. Malkovich tem uma barba ainda mais clara e segura as mãos de Diego Luna. Estão na passadeira vermelha do Zinemaldia, festival de cinema de San Sebastian e um dos mais prestigiados do mundo.
Num hotel que não há-de ser muito dali, multiplica-se a esta hora o sono de outras estrelas de uma constelação diferente. Os homens do futebol do Real Madrid repousam para a visita da noite deste sábado à Real Sociedad, recém-promovida à primeira Liga espanhola, uma das mais prestigiadas dos mundo. Nos sonhos nocturnos, é provável que José Mourinho pergunte quem quer ser José Mourinho.
À hora do jogo entre as duas equipas, no festival de cinema é exibido o filme espanhol "Pássaros de Papel". Retrata a vida de artistas de vaudeville, um género dramático feito à base de comédia frívola (sem importância, sem valor, fútil) de forma ligeira e às vezes picante, dita, cantada e musicada. Na película, os artistas procuram duas coisas: matar a fome e um lugar para dormir, no fim da guerra. Ouvir a expressão comédia frívola remete-me toda energia para o futebol português. O filme não está em estreia, é um remake de um remake de um remake. Um líder sai do país à procura de D.Sebastião, sonhando regressar com ele de mão dada, e com ele trazendo a solução para todos os problemas. Como quem desesperadamente procura uma côdea para a fome e uma cama para deitar o sono. Madaíl procura soluções em pássaros de papel. O ecletismo do Real Madrid não chega ao vaudeville. Há no entanto um sinal positivo: Diego Luna e John Malkovich não se estão a rir do futebol português.

Azulejos brancos

O corpo fez um esforço e empurrou as pernas que vinham de duas fintas para um inesperado sprint, transformado em notícia de última hora, à custa uma saída de drible mal calculada.


O homem aleijado entrou no hospital atento às paredes para ver o reflexo das luzes no azulejo branco, à procura de um efeito de espelho que lhe pudesse confirmar o ar doente na cara que a cara via no inchaço do joelho. E esse foi o primeiro problema.
O jogador é o soldado em sentido figurado, pelo que morrer em campo, mesmo que em calções, manga curta e meias pelo joelho, morrer em campo é o exagero de linguagem do desporto mais habitado do mundo, dito por quem vai à guerra quando afinal estão ali todos numa batalha de chuteiras, caneleiras e uma bola da cor da paz, a fazer trincheiras imaginárias na relva.
A crise mandou dizer às paredes que o preço do cimento está pela horas da morte. E a cola, e os tijolos, para já não falar dos azulejos, os tijolos custam o dinheiro que os donos do dinheiro não estão dispostos a levar para o centro hospitalar, receando que aí o dinheiro não resistisse a uma aplicação cirúrgica e que depois não houve mais em sotck para a transfusão necessária. Receavam mandar mais dinheiro para dentro das portas irmãs das portas das antecâmaras da morte.
Decidiu numa fracção de uma fracção de segundo. De peito para fora, bola no pé direito, máquina de calcular no coração a bombear o sangue para o corpo todo. Tinha adiantado a bola quatro metros para lá do previsto e esse imprevisto tinha posto a bola a dois metros de um soldado do pelotão inimigo. O coração fez as contas, contado só com o jogo limpo, descontando as regras dos defesas que fazem a defesa do passa a  bola mas não passa o homem e vice-versa. Chegou primeiro, ganhou a bola no derradeiro fôlego e ao ver-se com três amigos e dois adversários pelo caminho até à baliza, aquela ameaça de golo morreu à nascença porque a perna esquerda foi ancorada na relva por uma rasteira que não vinha no argumento do filme. Era uma vez a história de uma rótula partida.
E o problema foi de facto esse. Nas paredes só havia pladur e tinta. O paciente não tinha forma de ver a doença ao espelho. Talvez na enfermaria houvesse brilho do chão ao tecto. Talvez sim, talvez não, ganhando o último dos incertos. 
A caminho do hospital, vai um homem deitado numa maca amarrada à parte de trás da ambulância, valha ao senhor que por dentro e não arrastado no exterior gravilha fora, se o chão fosse de gravilha. As cores de Manchester permitiram a um jogador de Serzedo uma entrada rápida e triunfante no quarto escuro da radiografia. A mensagem a preto e baço dizia da desnecessidade de uma ecografia. Era uma rótula partida e ponto.
Os enfermos, camaradas casuais do parque de estacionamento improvisado de macas eram todos bêbados menos dois. O da rótula e um queimado. Havia quatro bêbados em frente e dois gémeos, verdadeiros mesmo da hora dos copos, a um canto. Tinham um ressonar gémeo e meia dúzia de pontos gémeos no nariz, acabados de coser, assim como eram gémeas as marcas roxas e os inchaços nos olhos, face e testa dois dois.
A perna esquerda foi engessada. Deram-lhe duas folhas com receitas. Um papel para um consulta noutro hospital e apresentaram-lhe uma conta de onze euros.
À saída pediram-lhe para não se esquecer dos papéis com ordens assinadas e que lhe poriam o corpo a dormir. Não tinha senão o remédio de ir embora sem ver azulejos brancos, mas levava pladur numa perna inteira. Era o reflexo possível do serviço nacional de saúde.

Botanomância

A uma distância de um palmo dos olhos, o livro virou a página número 493 para o leitor, estando este deitado de costas para o sol numa toalha onde, para  além do tronco e das pernas, fazia apoiar os cotovelos em jeito de âncora do corpo e escora dos braços. 
O livro também estava deitado, mas de barriga aberta para cima. As entranhas da história deixavam passar a parte dos crimes escrita por Roberto Bolaño em 2666. A linha em questão foi vista por um par de olhos que se abriram e fecharam, a fim de verem de novo e de tentarem ver melhor aquela que devia ser a vigésima palavra nova encontrada pelo leitor, já arrependido de não ter apontado as anteriores dezanove, que teve o cuidado de ir procurar à internet no iphone. Esta ele não teve de fazer busca porque o escritor fez o favor de dizer o que queria dizer na linha a seguir. Temos com isto que na linha anterior havia a palavra botanomancia, mas que na que se lhe seguia era explicado o sentido de botanomancia, no livro utilizada para falar das pessoas adivinhas e que se põem a adivinhar através da observação dos vegetais.
Quem de fora estivesse a olhar para o estado vegetativo do leitor ao sol, desconhecendo em absoluto o conceito de botanomancia, estaria tentado a dizer que o livro do tamanho de uma estante, em vez de lido, estava a ser devorado.

Os loucos dizem coisas

Hoje quando chegou dizia ter vindo de lugar onde tinha chovido um dilúvio, desesperando-se a dizer não ter provas de de lá ter vindo ou  de lá ter estado, nem de ter estado para perder o tempo a mentir, passando por um ribeiro só para mergulhar e chegar encharcado como meio de prova. 
Os olhos colados nas sobrancelhas estavam a olhar a para o cabelo, a dizer que o cabelo estava seco e não sabia como. As mãos estavam a dizer a mesma coisa apalpando o corpo todo, cobrindo de forma seguida  mas alternada a lã da camisola, os quadrados da flanela da camisa, a bombazine das calças, calva pelos joelhos e pelas nádegas. Os pés batiam as botas no chão, estando as botas também secas, não entendendo Manuel o porquê. Junto depois os pés. E jurou. Jurou estar a chegar de um lugar onde tinha chovido o dia inteiro.
Manuel ficava pela superfície dos assuntos em frente às pessoas e guardava os pormenores das histórias na gaveta de cima da mesinha da cama. Não conseguia adormecer sem antes falar baixinho escondido pelos lençóis  e lá contava os segredos todos ao gravador. Nessa noite a cabeça tinha vindo de uma música que lhe pôs a cara em lágrimas. E ele, só para não ficar triste, fingiu ter estado à chuva o dia todo.

30.6.10

O esqueleto do morto

O que a seguir se relata é a autópsia de um gigante estendido ao comprido num relvado de futebol. Hora da morte: 21 horas e 24 minutos. Local: Cidade do Cabo, África do Sul.

No mundo inteiro passou a haver apenas bocas. Milhões de bocas com dentes de fora. Trincavam a pele, trincavam a carne, rasgavam os músculos, rasgavam as veias, bebiam o sangue. As bocas que já não eram bocas mas eram dentes vinham de todas as casas de todas as ruas, vinham dos parques de adeptos de futebol, vinham nos comboios, nos aviões e nos carros. Estavam no exterior do estádio, em todas os lugares sentados da bancada e nos lugares de pé. Estavam até dentro do balneário.
No dia da morte de uma equipa de futebol, o cadáver não tem tempo de chegar a ser cadáver. O tempo que o tempo precisa para estalar dois dedos é o tempo que o morto demora a ser transformado em esqueleto. Este é o da selecção portuguesa de futebol e ficou assim estendido num relvado africano:
Junto a uma das balizas está um crânio. O cérebro da equipa foi Eduardo. O guarda-redes foi guarda-redes e foi guarda-costas de toda a equipa. Uma, duas, três, quatro, cinco vezes. Vezes de mais. As vezes todas.
No lugar onde jaz o ombro direito da ossada esteve Ricardo Carvalho. Aquele ombro morreu sem dores. Dali não veio a causa da morte. Nem veio dali, nem veio do ombro esquerdo. No sítio do ombro esquerdo esteve sempre Bruno Alves.
Vamos aos braços do morto: do lado esquerdo, uma saúde de ferro, sendo esse o membro mais forte do corpo inteiro. No braço esquerdo, Fábio Coentrão esticava os dedos da "asa" até ao joelho e até aos pés. Ao passar a autópsia para o braço direito, não passamos, por que não há braço direito. Por aquele sítio andaram Paulo Ferreira, Miguel e Ricardo Costa. Foi como se não tivesse por lá passado ninguém. Escreve-se no bloco de notas que está no chão um corpo maneta.
No fundo da coluna vertebral, a zona pélvica está bastante desgatada. Foi ocupado por um jogador cansado, Pepe, e por outro sem rotinas do lugar em dez anos de carreira, Pedro Mendes.
Nos dois lados da bacia existem as marcas dos pitões de Raul Meireles, Tiago e duas ou três pegadas de Deco. O futebol transbordou algumas vezes a partir daquela região, mas não trasnbordou as vezes suficientes.
Este corpo só utilizou um joelho na passagem por África. Umas vezes na direita e outras vezes na esquerda, quase sempre com Simão e uns minutinhos com Danny, as pernas quase nunca flectiram como estavam obrigadas a flectir se o caminho era o tíutlo de campeão do mundo.
E chegamos aos pés. Um é lança-misseis e sabe de cor e salteado todas as ruas, vielas e avenidas de uma terra chamada fundo da baliza. O problema português também esteve no facto de esse pé não ter chegado a tocar chão africano. Esse pé foi Cristiano Ronaldo. No outro, houve momentos de ocupação terrena com Liedson e momentos de ataque em riste com Hugo Almeida. Nenhum garantiu passadas seguras, firmes e tranquilas.
A causa da morte de uma equipa encontra-se na soma de todas as partes. É hora de fazer o funeral ao morto. Sem colocar o treinador no papel de coveiro.

28.6.10

A estupidez azul do olhar

Existe um balcão, uma caixa registadora de costas para o cliente e um terminal de multibanco numa placa giratória, estacionado de costas para a empregada. Existe, do lado de quem compra, a espera oportuna pelo momento adequado para pedir o cartão da Fnac. E existe, do lado de quem está ao volante da máquina de calcular gigante, uma rapariga convencida de ser portadora de super-poderes por via de estar dentro de um colete verde com uma lista horizontal amarela.
- Já tem o cartão fnac?
- Não, mas quero ter.
- Dirija-se ali à minha colega.
- Obrigado.
Existe agora uma entrega voluntária de documentos a troco de um cartão cultural provisório que no futuro há-de ser permanente e garante a acumulação de verba suficiente para descontos. Documento vai, fotocópia vem e a super-mulher da banca exibe a certeza de estar a vender cartões como nunca ninguém antes o tinha feito. Temo que ela possa dizer a seguir que é a fundadora da loja. Mas não. Ela aponta o caminho da conversa na direcção azul da cor do olhos:
- Consigo tudo com estes olhos!
Exclamo a repetição que faço da frase dela porque ela tinha os olhos arregalados. Está bem eram azuis, mas não eram bonitos. Está demonstrado à evidência que no dia em que nasceu o céu caiu com toda a força e entrou na íris e fez uma ocupação vitalícia do terreno visível. Causou no entanto, essa queda abrupta, danos irreversíveis nas terras altas dos glóbulos oculares.
Hoje voltei à loja e lembrei-me da estupidez azul do olhar. E fui muito bem atendido por uma rapariga com olhos castanhos e um sorriso. Boa tarde.

17.6.10

A volta ao mundo em 25 dias (7)

Dia 7 -

Profissão - Não tarda, alteram-se os papéis. Domenech deixa o cargo de seleccionador francês e passa a ser jornalista. É o papel que lhe está destinado na peça Ferrailles e Chiffons, caso aceite o convite. Dizem os astros que a velha Gália está com muitas saudades de ter um treinador de futebol a fazer de treinador de futebol. O México nem precisou de rezar, como se faz na profissão de fé, para vencer uma França parada no campo e parada no tempo.
A profissão mais requisitada do dia foi a de massagista. Em três jogos houve três roturas musculares e três substituições forçadas. Por falar em três, vem Higuain à conversa pelo enorme talento com que desempenha a profissão de futebolista. Os golos não são como o ketchup. São de ouro, como o silêncio, terá de perceber o jogador profissional de clubes chamado Cristiano Ronaldo.

A volta ao mundo em 25 dias (6)

Dia 6 -

Museu - Emagrecido primeiro, e voltado a encher depois, Maradona faz de cada conferência de imprensa o concerto de uma banda drástica. Hoje veio mandar calar as críticas de Pelé e mandou o brasileiro voltar para o museu. Teve piada? Teve. Fez algum sentido? Não. Se esta Argentina for campeã, as federações de futebol do mundo inteiro podem passar a fazer prospecção de treinadores em manicómios.
Por falar em locais de culto com carácter expositivo... A Espanha andava a exibir o troféu de invencibilidade e entrou em campo com a taça de campeã da Europa de futebol na mão e esqueceu que relvado não é museu. Para a Suiça, tudo aconteceu na hora certa.
E para terminar este piscar de olhos ao mundial de futebol, uma pequena sugestão: não esqueçam Diego Forlán, bi-bota de ouro em clubes de segundo plano, no dia em os senhores da bola decidirem inaugurar um museu de futebol.

16.6.10

Os diários da bicicleta (5)

Breve dissertação matutina sobre o nobre mas não menos odioso acto de engomar. É como em tudo na vida: no princípio é tudo muito bonito, o problema vem depois. Ao fim de três ou quatro peças, ou então de uma única camisa, a piada evapora-se à exacta velocidade da água. A sensação de utilidade para o lar que invade um homem vai embora com a mesma pressa. No caso de ter a necessidade de justificar a preguiça através de algum outro factor mais desculpabilizante, desculpabilize-se com a poupança de electricidade.
Está neste ponto a conversa em que encontro uma saída airosa utlizando o recurso das energias limpas: o vento junto à costa do atlântico norte. Esta t-shirt está aqui e nem tem a noção de ter sido passada a ferro pela nortada no corpo de um homem aos pedais de um texto sobre as vantagens de uma bicicleta.

A volta ao mundo em 25 dias (5)

Dia 5 -

Incompetência - O Nelson Mandela Bay é o primeiro estádio da cidade feito para o futebol. Calhou lá se terem encontrado dois treinadores com elevados níveis de incompetência nesse mesmo desporto, a nível sénior, ao longo das últimas décadas. Selecções como a inglesa, sul africana, mexicana, portuguesa e clubes como o Real Madrid são folhas de serviço com o carimbo de reprovado para Carlos Queiroz e Sven-Goran Eriksson. As vitórias de um e de outro estão cada vez mais longe no tempo, a cada dia que passa. Costa do Marfim e Portugal demonstraram uma tremenda incompetência competitiva. Quem te medo de perder raramente consegue ganhar.
No final do encontro, Deco, que esteve em campo sem a competência desejável disse palavras certas sobre algumas opções do treinador. O problema é que as disse num local onde não tem competência para as dizer: em frente a câmaras de filmar e microfones.
Por último, incompetência também para os homens da FIFA. Eleger Cristiano Ronaldo como o melhor jogador do encontro é ver futebol com a nuca voltada para o relvado.

A volta ao mundo em 25 dias (4)

Dia 4 -

Angústia - Angústia já deu nome a um livro para dizer coitadinhos dos guarda-redes na marca de penalty. Se há lugar ou momento onde o guarda-redes não é nenhum coitadinho é o momento de uma grande penalidade, precisamente por não ter nada a perder. Sim senhor que está ali para dar o peito, mas só está a dar o peito a uma bala de couro. Nos penaltys, o guarda-redes só está a correr o risco de ser herói da partida, da competição, da nação ou do mundo.
Já se tentou rever esta história, colocando antes a angústia no pé do jogador que assume a marcação de um lance sem barreira a onze metros da baliza. Não me parece que angústia seja o termo mais certo para escrever nas costas de um homem que caminha desde meio campo com a obrigação de colocar a bola na rede.
Angústia, angústia sofre o jogador que pelo meio de qualquer volta infeliz num jogo de futebol, coloca, sem qualquer intenção de o fazer, a bola na própria baliza. Isso é que é angústia. Aconteceu ao dinamarquês Christian Poulsen, que abriu caminho ao triunfo da Holanda. Angustiante. E capaz de dar uma verdadeira dor de baliza.

A volta ao mundo em 25 dias (3)

Dia 3 -

Vermelho - E ao terceiro dia do mundial de futebol, caiu por terra uma teoria elaborada cá pelo nosso campeonato e ao longo dos anos por treinador português sem vergonha, segundo a qual é mais difícil jogar contra dez. Essa teoria foi assassinada em directo durante três vezes ao longo do dia, em três estádios diferentes. Ghezzal, Lukovic e Cahill foram expulsos nas selecções da Argélia, Sérvia e Austrália. Em superioridade numérica, a Eslovénia, o Ghana e Alemanha venceram os encontros, com maior ou maior dificuldade. Retomando o raciocínio inicial, os três resultados foram para vários treinadores portugueses corarem de vergonha. Em onze contra dez, quem tem onze tem mais condições para fazer uma trabalho competente. Se não o faz, pode ser por azar ou por incompetência. E nunca pelo facto de o adversário ter ficado mais forte a jogar com menos.

14.6.10

A volta ao mundo em 25 dias (2)

Dia 2 -

Panturrilha - Panturrilha em vez de deus. Mesmo que deus tenha regressado aos campeonatos do mundo de futebol. Mesmo que deus esteja a treinar o sucessor de deus. E panturrilha em vez do frango sofrido pela Inglaterra. Isso eram coisas à espera de acontecer. Maradona é o seleccionador argentino e com a qualificação no bolso tinha de regressar. E a Inglaterra mandou para dentro de campo um guarda-redes com aviso de recepção, como o nome nas costas a dizer Verde. É a mania da superioridade de quem anda sempre a dizer que os americanos não percebem inglês.
Escolho panturrilha como palavra passe do segundo dia do campeonato do mundo, porque panturrilha foi a única coisa que surpreendeu nesse dia. Vinha num jornal que o veterano Véron estava a precisar de descanso por causa de uma dor na panturrilha. Panturrilha aqui não existe, mas noutras partes do globo quer dizer barriga da perna. Descanso e massagens devem resolver o problema. Não pode é Maradona ser o massagista. Ele tem sempre o terço numa das mãos. Será na do golo à Inglaterra em 1986 ou na do episódio em que saiu de mão dada com uma enfermeira para o controlo anti-doping em 1994? Neste mistério da fé estará o sucesso da Argentina na África do Sul. Esteja como estiver a panturrilha de Juan Sebastián Verón.

A volta ao mundo em 25 dias (1)

Dia 1 -
Tshabalala - O nome pode ser cantado sem o menor esforço no refrão de uma música pop, em grupo, num teatro, num pavilhão, ou num estádio, como quem grita um golo. A ajudar à festa, o clube onde joga o homem que marcou o primeiro golo no mundial da África do Sul tem o nome de um grupo de rock: Kaizer Chiefs.
Com o refrão à mão de levar à boca e com uma banda no palco, de estranhar seria se não houvesse espectáculo. Foi como se o destino estivesse escrito nas estrelas. Sthiphiwe Tshabalala quando era demasiado velho para ser das camadas jovens e demasiado novo para entrar no futebol dos adultos foi emprestado pelo Kaiser Chiefs ao Free Stars. Cresceu e tornou-se num dos melhores jogadores dos Kaizer Chiefs. Estava a seguir o caminho certo e por ali foi parar à selecção da África do Sul. Estava a meio do jogo 50 Bafana-Bafana quando abriu a asa esquerda e fez a bola voar até a um dos dois sítios da baliza onde é possível fazer ninhos. E ali nasceu um herói nacional.
A história dava para escrever a letra de uma música rock. Não a deixaremos terminar sem antes esclarecer que é a banda que tem o nome de um clube de futebol sul-africano. Nos anos noventa, uns putos de Leeds veneravam o capitão Lucas Radebe. Isso tudo: Radebe é sul-africano e tinha sido contratado pelo Leeds ao Kaizer Chiefs. O mundo é pequeno. Do tamanho de uma bola.

Os diários da bicicleta (4)


Com vontade de apanhar pelo caminho o domingos aos bocados, fiquei-me pelo processo de intenções, esbarrando o nariz na porta de correr da garagem na cave do prédio. Como em tudo da vida, foi uma questão de chave. Ou se tem e uma porta é uma página nova de um livro por onde se entra ou ao qual se regressa, ou então não se tem e a porta passa a ser uma criatura de ideias fixas, disposta a não nos deixar seguir para lado algum.
Ontem à noite a chave de casa ficou esquecida em cima da secretária, no espaço entre o monitor e o teclado. Ela fica sempre ali, porque desconfio que gosta de ler e de estar atenta às notícias. Para informação delas, as chaves, lhes digo do facto de que à conta de terem passado a noite no cibermundo, ao início desta tarde fui obrigado a guardar meias, sapatilhas, camisola e calções porque a bicicleta estava para lá de uma das tais portas de ideias fixas.
O regresso à estrada de amanhã não passa. Com passadeira vermelha estendida e tudo.

13.6.10

O amor dança aos pares

Quero bilhetes para dois lugares na fila frente, ao centro. Quero entrar nesse teatro antes da hora. É para ensaiar. Não, não sou actor, nem bailarino. Quer dizer às vezes sim. Sim o quê? Os dois. Bilhetes? Não, actor e bailarino. Sei chorar quando penso que o dia vai doer muito. E também sei fazer de conta que não sei de nada disso e saio de casa com dois braços bem educados e um par de olhos felizes. Digo-lhe de resto que a minha parte de bailarino vem precisamente daí. Do sítio onde as lágrimas se escondem no segundo em que as pálpebras abrem e as pálpebras fecham, fazendo as duas o paso doble e claro que isto tudo só se passa nas vezes em que a vida é uma tourada.

Quero dois bilhetes para ver a loucura de perto. Aproximem o espelho. Consigo ver nele um palco. E no chão do palco vejo os meus pés dentro dos sapatos oferecidos pelo mágico que se cansou de olhar para a cartola e de esperar que amor de lá saísse no próximo truque. Deu-mos no dia em que se reformou e morreu sem saber que o amor a meio da magia se tinha divido em dois e estava há décadas perdido nos atacadores destes sapatos pretos. Os bilhetes são para ver os dois lados do amor. Era de se lhe tirar o chapéu, se o amor fizesse dançar uma perna e depois a outra. E tomasse conta do movimento das ancas.


12.6.10

A história da vida de um disco

A música Fake Plastic Trees entrou na minha vida pela porta do lado esquerdo do meu Fiat 127 azul escuro. Estava escondida dentro de uma cassete BASF preta, onde eu tinha gravado, por milagre, o The Bends de uma ponta à outra, sobre uma fita com a história dos anos 80, uma fita com gravações e re-gravações de jogos do ZX Spectrum.

Nesse dia tinha acordado cedo. Apanhei o autocarro da Sequeira, Lucas & Venturas para poupar dinheiro porque tinha o passe. Demorei duas horas e ir ao e a vir do Porto. Tinha gasto quase todo o dinheiro que tinha juntado nos meus anos. A viagem de regresso a Serzedo foi como se estivesse a regressar da Nova Zelândia: o cd The Bends ardia-me nas mãos. Li e reli a capa e contra-capa. Fiquei feliz por não ter saído na noite anterior e por ter poupado mais um dinheirinho com isso. Tinha dormido bem, estava fresco e ainda me tinha sobrado um nota de mil escudos e outra de quinhetos, como resultado dos cinco contos que tinha levado no bolso para o Porto.

O Fiat 127 foi durante uma fase da minha vida o meu relógio, o meu controlo emocional, o meu destino: saía à hora em que ele decidia pegar, aguentava-me à bronca que era o remédio e chegava onde ele decidia parar. Nesse dia fez-me as vontades todas. Arrancou quando eu quis, ouviu o disco comigo e por vezes acho que só não foi abaixo porque estava a cantar comigo e com o leitor de cassetes.Não muito longe casa, já estamos, eu e o carro, mais do que saciados quando começa a ser possível perceber que High and Dry está a chegar ao fim. Valeu! Valeu por tudo, valeu pelos três contos e quintentos em 1995, valeu pela viagem de camioneta ao Porto, valeu por ter ido e voltado a pé da discoteca à paragem dos autocarros.

O silêncio não deve ter demorado 5 segundos. A seguir veio Fake Plastic Trees… fui nadar e conseguia respirar debaixo de água. Pensei ter sido sugestão da capa do disco, mas não era. Cada acorde proporionava uma braçada para diante. Cada palavra dizia os segredos todos do fundo do mar. E depois havia ainda mais ao fundo uma luz que parecia verdadeiramente uma luz, mas não era, era o mundo. E a profundidade do mar tinha sido o regresso à barriga da minha mãe. E quando tudo parou, ali estava eu: um rapaz sentado num FIAT 127 , de frente para a praia num dia chuva com os dois vidros abertos. Certo de ter acabado de nascer. E quis nascer de novo. E voltei a puxar a fita atrás.

10.6.10

Confissões africanas

O meu mundial de futebol morre na praia antes do lugar onde as dunas nascem.
Este jogo faz de conta que tem noventa minutos. A diferença é que este está parado no tempo. A baliza não tem redes, o campo não tem bola, as dunas não são bancadas nem as bancadas têm gente. Então os jogadores não têm público. O mar está autorizado a deixar de fazer o papel duplo de balneário e de sala de massagens. As poças de água no chão são as lágrimas da areia, em depressão por não a deixarem ser verde como a relva pelo menos durante um dia. Sem campo, nem redes, nem povo, um jogador futebol não é um jogador é um homem. E um homem sem bola é capaz de não conseguir driblar os obstáculos construídos pelo jogo da vida.
O árbitro foi o primeiro a ser avisado de todas as circunstâncias e decidiu ficar em casa. Sem o apito, vai ser preciso recorrer ao estrondo de um ponto final para terminar este encontro.
[photo @ VNGaia]

9.6.10

Os diários da bicicleta (3)

A crónica da etapa de hoje da volta à vida em bicicleta começa em Nantes. Não fui a França. A França veio até mim. Dentro um iphone, dentro de um disco, dentro da criatividade de um grupo chamado Beirut. E fica a parecer uma matrioska, a cena destinada a contar a música com que me fiz à estrada por cima da sopa do almoço. Distraído com o facto de o texto se ter entretanto transformado numa salada russa, levei com um pé de água na cara, primeiro, a seguir nos ombros, depois nas pernas e em todo o corpo em poucos segundos. Coloquei a hipótese de partir aquela cara (feia) com que o tempo decidiu sair à rua, concluindo de imediato que não se bate numa tromba de água.


A morte do artista

Ia sonhar que fazia um álbum. Editava o disco, dava um concerto e morria à noite durante o sono quando ainda conseguia ouvir palmas. Afinal era terra sobre o caixão, era ele a cair no esquecimento, encolhido no interior de veículo de madeira sem marcha atrás e que não tinha lugar do morto, mas que transportava as pessoas em piloto automático para o fim, que é como quem diz: quando a terra estava toda posta em cima, era uma vez.

Os diários da bicicleta (2)

O Belmiro nunca foi nunca foi meu avô. Comecei a saber da existência dele em casa da minha avó Emília. Havia fotografias a preto e branco com molduras ovais. Fotografias onde ele fazia pose e sustinha a respiração. Tinha cara de ser um um homem de bem. Um dia encontrei numa velha arca da sala, do tempo em que havia arcas de madeira em todas as casas, um chapéu de polícia. Não era do meu pai. Não era do meu tio. E de certeza que não era da mãe nem da minha avó. Só podia ter sido do Belmiro. Na minha ideia o Belmiro tinha sido polícia.
Sentado no soalho de madeira, acompanhado pelo cheiro da madeira com bicho, retirei da arca um cartão com uma fotografia igual às outras fofografias do Belmiro, muito quieto, muito senhor de si. O cartão dizia Bombeiros Voluntários da Aguda. Com aquele chapéu imaginei logo o Belmiro como o comandante dos bombeiros. Li com mais atenção e vi que o Belmiro era o cobrador.
A família inteira lá me foi explicando que o Belmiro era o meu avô e quando perguntava por ele a facção extremamente católica da família, a minha mãe e a minha avó Emília, respondia que o senhor o tinha chamado para o céu. Eu acho que disse que também queira lá ir.
Soube dos detalhes da morte do Belmiro uns anos mais tarde. Ela tinha uma bicileta preta com um assento largo de couro castanho. Era uma bicicleta como as bicicletas todas daquela zona e daquele tempo. Imagino que também tivesse uma pasta em pele com o livro das cobranças e uma régua de metal para cortar as cotas. O Belmiro morreu em 1965, quando fazia o traballho voluntário para os bombeiros da Aguda. Ia na bicicleta e foi abalroado por um carro na EN109. O carro fugiu e nunca soubemos quem matou o meu avô. Eu nasci quase dez anos mais tarde. Por isso digo que ele nunca teve a oportunidade de ser avô de um rapaz chamdo António.
Peguei na bicileta à meia noite. Vesti um colete florescente e desci sem luz e sem mãos nos travões a estrada que vai atè à Granja. Entrei na EN 109, passei a estação dos comboios e cheguei até perto do cruzamento onde hoje há um semáforo e onde me disseram que o meu avô Belmiro tinha morrido. A estrada é muito movimentada a qualquer hora do dia. Durante todo o percurso não passou nenhum carro por mim, em nenhum dos sentidos. Gosto de pensar que avô Belmiro estava a olhar por mim. Olhei para cima e disse: olá, eu sou o António. Sou teu neto.

7.6.10

Os diários da bicicleta (1)

Os pedais levam os olhos à freguesia onde a mãe vive. Ao descer em direcção à casa da família, o antigo habitante de Serzedo, quanto mais pedala para a frente, mais viaja para trás no tempo. E ao descer o paralelo, empedrado para quem quiser, da rua 25 de Abril ele está aqui e está com dez anos e vai com mais dois miúdos na mesma bicicleta e vão cair os três e aquele que agora pedala sozinho recorda o momento em ficou a saber que tinha escroto e que se a manete do travão direito tivesse perfurado um milímetro a mais, ele um dia não iria poder ter filhos.

Como qualquer bom filho que a casa torna, este que regressa ao final de uma tarde de domingo vai levar um "dvd" para a mãe colocar no leitor do autocarro que há-de partir de Serzedo em direcção a Torremolinos na madrugada desta quarta-feira. Que filmes levou o filho? "As Confissões de Schmidt", com o Jack Nicholson, sobre um viúvo numa autocaravana à procura de um rumo na vida, e a "Vida é Bela", com o Roberto Benigni, sobre a segunda guerra mundial e os campos de concentração, para onde as pessoas eram transportadas em grupo e com os pés nos pedais da bicicleta aquilo tudo começou a parecer uma má escolha para quem vai em excursão. Mas chega de autocarros.
Mudo muito pouco de assunto. Saio do autocarro para me concentrar no camião de um vizinho que é motorista de longo curso. A carroçaria é da cor do vinho tinto. Tem letras amarelas a dizer Eleutério. Fico a pensar se um homem que passa tantos meses fora da porta, não começa a ler adultério ao fim de uns tempos e se aquele patrão não é afinal uma mensagem subliminar. Só o subsídio de desemprego pode salvar aquele casamento. Vamos mudar o meio de transporte. Mas vamos mudar pouco: do camião para a autocaravana. O condutor é o Jack Nicholson, nas "Confissões de Schmidt", e o condutor vai tentar impedir o casamento da filha. Olho pela última vez para o camião do Euleutério e volto a mudar de veículo. Da autocaravana para a bicicleta. Sem filmes.

4.6.10

Graças a deus

Deus é muito bom a escolher fatos. A ser verdade que ele está em todo o lado, então em todo o lado há um homem com charme e a ser verdade que em todo o lado há um homem com charme não é menos verdade então que em todo lado há uma mulher à espera de ser amada como nos filmes a preto e branco.
Deus veio na cauda de um enxame, já diz a música, e mal chegou pegou num copo de vinho e deciciu dançar. Dança bem, para quem anda no mundo desde o início dos dias. E que não venha com coisas, porque aquela pose de quem está sentado sentado ao balcão só é conseguida por quem já passou noites sem fim a ver a vida no fundo de um copo, à espera de falar com deus. Neste caso, a falar com ele próprio. Louvado seja deus.
Sobre a arte individual de usar um colete como peça do vestuário masculino, há só a dizer o seguinte: é coisa para não se fazer, porque não está ao alcance dos comuns mortais.
No resto deste projecto a dividir em partes iguais aulas de música e pela estudos teológicos, confirma-se que uma mentira repetida muitas vezes chega a ser verdade: ele tem barba. E voz de deus.

The National - Bloodbuzz Ohio

Os bastardos do ditador

Abandona a praça de touros. Vira à direita, vira à direita, vai sempre em frente, passa a rotunda, segue em frente. Entra na estrada e encontra a marcha lenta. Oito carros à frente chegam criar um fila de quilómetros em poucos minutos. A ligação entre o Viana do Castelo e o Porto passa a ser num instante o gargalo entalado de uma garrafa. Não vai mais vinho para aquela mesa. A do canto. Isso, essa, a dos três senhores serventes na obra do Joaquim. É que eles são de fora e ainda devem muitos quilómetros à estrada.
Os três estão agora como nós todos, aos milhares, empatados a zero quilómetros por hora no asfalto da A28. A A28 mudou de nome, antes era IC1, e está à beira de oficializar a mudança de sexo, mas para tal é preciso dinheiro e para ter dinheiro e para ter dinheiro mandaram construir portagens na entrada e na saída da senhora.
Nós entretanto fomos transformados em caracóis e seguimos viagem devagarinho no dorso de asfalto do travesti inventado pelo governo. Mas vamos voltar aos três especialistas na arte de servente, deslocalizados em Viana do Castelo. Eles estão na carrinha aqui ao lado. O mais velho tem o cabelo a ficar branco, a cabeça a ficar impaciente com a demora e o juízo a ficar louco. Vem com o pescoço esticado para fora da janela a dizer que o protesto é uma vergonha e o que é preciso é um Salazar.
Falta muito para chegar ao Porto. O episódio repete-se. A democracia liberta a opinião, os lesados queixam-se do males que os conduzem ao papel de injustiçados e vem logo a seguir um fiel (tipo cão de fila) seguidor da ditadura. A este ocasional filho de Salazar, para não ter de lhe chamar filho de outra, convém lembrar que nos dias do coveiro da nação, ir de Viana do Castelo ao Porto era coisa para demorar umas cinco horas, ou até mais. A marcha lenta, se tivesse ido sempre a 40 quilómetros por hora, que não foi, só teria demorado duas horas. Afinal o tamanho "incómodo" da democracia é bem mais passageiro do que a perfeição ordeira do tempo do outro senhor. E o bastardo do ditador, lá chegou mais cedo a casa, no regresso do trabalho, mesmo tendo que aturar a insuportável velocidade do barulho da liberdade.

1.6.10

Conflito internacional

Parece que acabou de sair de uma fita de VHS. Estou a ver a mulher a caminhar na direcção do mar e a minha cabeça, pudesse lá ser de outra forma, já está a realizar o filme todo. A república sul do bikini, também conhecida por cueca, está muito para lá do paralelo 38, também conhecido por anca, e se lhe dessem um pouco mais de pano, a senhora segurava a cueca nos ombros. A república mais a norte do bikini, internacionalmente reconhecida por top, combina com a cueca como o charme feminino combina com pêlos debaixo dos braços de uma mulher. Estamos então perante um fato de banho politicamente instável. Aquele bikini é as duas Coreias. A mulher que o veste não casa com nada, nadinha de nada, quando a caminho do mar numa praia do mundo digital.

O último cantor de charme

O melhor do Porto é capaz de ser a voz do Reininho. Nunca nenhuma boca antes, nem nunca nenhuma boca depois, conseguiu ir, e foi, pelas ruelas de pedra da cidade junto sítio onde o rio acaba e o mar começa. Sem medo das ondas. Sem reclamar betão para proteger das vagas. Ele começou antes do tempo dos paredões e saiu das dunas como se estivesse a sair todo nu, com aquela voz que mais ninguém tinha, com aquela voz que mais ninguém teve.
No século anterior ao século do casamento entre as pessoas do mesmo sexo, o Reininho já casava nos textos as palavras homossexuais, palavras que nunca se tocariam na métrica dos poetas e dos trovadores anteriores, mas que nos cadernos dele nasceram e dos cadernos dele foram conquistando o país inteiro, com a força de um Afonso Henriques, mas com a graça de uma rapariga pronta para a colheita.
O melhor do Porto é a voz do Reininho. É o palco onde ele surge, esguio ao microfone, de colarinhos moles ao pescoço, com as calças curtas e os tornozelos com vontade de espreitar a plateia. O melhor do Porto é a alegria da músicas antigas. É uma voz rouca. Aguda. À beira de uma ataque de verbos. É o som das letras do último cantor de charme em português.

31.5.10

O homem que disse sou mais feliz quando estou triste

Escrevia para um jornal às segundas, terças e quintas. Ficava por casa às quartas e sextas. Fazia a mala permitida por lei nas companhias da aéreas de low-cost e ao sábado acordava às cinco da manhã. Punha o nariz do lado de fora da janela da marquise, ritual celebrado em tronco nu, ameaçasse o tempo sol, ameaçasse o tempo chuva. O frio dava-lhe sempre mais a impressão de ter sangue na veias. Ficava contente à janela com as temperaturas baixas, a apreciar a magia dos pêlos eriçados , da pela de galinha, do arrepio de norte a sul da coluna. E ia triste para dentro porque preferia os dias de sol e hoje o termómetro era capaz de estar com de vontade falar baixinho.
Pegou na mala e no casaco. Guardou o telefone. Trancou a casa. Desceu as escadas a sorrir porque não tinha mensagens nem chamadas por atender e isso era bom. Significava que não o tinham tentado aborrecer com qualquer detalhe inútil de qualquer vida individual ou colectiva. Quando aterrava solitário nos aeroportos baratos da Europa e ligava o telemóvel, voltava ficar contente por não ter sido importunado durante o tempo em que o telefone tinha estado desligado. A caminho das plataformas dos autocarros ou dos comboios sentia-se triste pelo tarifário ser de carregamentos e por ter o saldo a chegar ao zero e não poder ligar a alguém, uma vez que o roaming fazia uma chamada viajar a um preço mais elevado do que a pessoa dele tinha embarcado desde o Porto.
Aos domingos regressava na hora em que os dias por norma estão a fechar os olhos para dormir. Tinha até à meia-noite para escrever a primeira crónica da semana. Encontrou o título por cima das nuvens da Europa: "sou mais feliz quando estou triste".
Pediram-lhe para desenvolver o tema na terça-feira. As vendas do jornal tinham disparado. A crónica andava na boca dos programas de rádio e nos olhos de todas as televisões. E choveram todos os convites para o homem que escrevia às segundas, terças e quintas. Sorriu ao pensar no interminável número de pessoas com disponibilidade de olhar para as letras ensinadas por ele. E de imediato o rosto ficou com um qualquer adjectivo triste. Teve a certeza de que nunca mais iria ficar sozinho.

Os fantasmas

Há estes objectos no quarto: um martelo em cima da cama, uma caixa rectangular do tamanho de um caixote de uma televisão antiga e uma outra do mesmo tamanho com fotos do passado. Entro e fecho a porta. Pego no martelo, nas fotos e nos pregos. Quando começo a martelar vem das quatro paredes o som de Anyone´s Ghost, dos abaixo reproduzidos National. Preguei todas as fotos com todos os pregos em todas as quatro paredes. Martelei sempre ao ritmo da bateria. Tive dias no passado a preto e branco e tive dias a cores. Sorrisos. Indiferenças. Forrei o quarto com o passado em dois minutos e cinquenta quatro segundos. As fotografias eram de grandes dimensões. E eis que estava a pressentir o fim de Anyone´s Ghost. Fechei a porta sem olhar para trás. Tranquei o passado com a chave e vim para a rua. Dei a minha mão à tua e deixei cair a chave pelos buracos de uma grelha de aço que havia no chão e por baixo da qual passa um ribeiro subterrâneo nesta parte da freguesia. Seguimos em frente. Imunes a fantasmas.


The National, Anyone´s Ghost

28.5.10

Homens que nos levam ao céu (I)

Bon Iver
Uma guitarra, quando ouve uma voz, e no caso de a voz estar à beira do fim da rua onde só vão as vozes chorar de raiva e de dor, a guitarra também chora? E as baquetas e o tambor? Só estão ali para combinar o ritmo ou foram convidadas por alguém, das amizades do cantor, para este funeral de um amor solteiro até à cova?
A música, esta manhã quando acordou escolheu vestir um xaile preto pelos ombros e para os pés quis umas sandálias pretas sem tacão a fim de os proteger, porque no coração do cantor ia já uma consumição da cor do inferno e as dores nos pés só iam a atrapalhar a dor da sua principal função e neste caso a sua função principal era a de dar nós invisíveis à volta do coração. Mas o cantor não é um homem? Então o porquê da sugestão da possibilidade de sandálias pretas com tacão no bilhete de identidade da mortalha? Talvez seja quem escreve a dizer que um homem quando escreve um texto com o título homens que nos levam ao céu, está a pensar um tudo menos em sexo, esbatido aqui o sexo à condição de relação entre corpos do mesmo género.


Bon Iver - Skinny Love

27.5.10

A extraordinária primeira pessoa do singular

O inglês Ian Mcwean deu o título de "Solar" a uma novela fictícia a que por sua vez decidiu dividir cronologicamente em três partes. A coisa começa em 2000 e acaba em 2009. Lá pelo meio, algures em 2005, aconteceu um episódio que me veio à memória depois de ter acontecido hoje um fenómeno gémeo.

Michael Beard é um físico galardoado com o prémio Nobel e é o protagonista de "Solar". Já o físico dele próprio é um desafio perdido. Engordado nos cinquenta e tal anos, é frequente começar a suar quando se vê confrontado por alguém fisicamente mais dotado. Estamos no ponto em que as páginas do livro colocam Beard na estação de Paddington. O velho redondo compra um pacote de batatas fritas, um dos seus vícios, e entra para o comboio. Algures na viagem, pega no pacote de batatas fritas que está em cima do banco e começa a comer as batatas. Em frente a ele está um homem forte e alto e isso vê-se sem sacrifício apesar de ele estar sentado. E qual não é o desplante do passageiro gigante: vai ao saco de batatas fritas que Beard segura com a mão esquerda e tira uma batata. E come a batata com ar de quem está deliciado. Beard fica tão incrédulo como colado ao assento porque o adversário é mais corpulento.
Num gesto de coragem, pegou na garrafa de água do outro e deu um gole. O outro carregou o semblante e nada mais fez. A seguir a esse momento de pânico, no fim da linha, o homem mais novo levantou-se e Michael Beard lamentou a ousadia. Com um gesto, o jovem puxou a mala de velho físico e colocou-a aos pés do dono. Foi cada um à sua vida. Já dentro do táxi a caminho de casa, Beard sentiu um estalido metálico no bolso do sobretudo, levou lá a mão e ficou vermelho de vergonha ao ver intacto o pacote de batatas fritas que tinha comprado em Paddington. Pensou no que o homem teria ficado a pensar dele. Tinha sido inocente, mas idiota chapado ao mesmo tempo.

Semanas mais tarde, durante uma conferência sobre os benefícios das energias alternativas em deterimento dos combustíveis usuais, Beard utilizou este exemplo numa palestra para dizer que em situações de crise, por vezes o problema não está nas outras pessoas, nem no sistema, nem natureza das coisas, mas em nós mesmos.
No final da palestra, na fase dos cumprimentos e dos elogios, o prémio Nobel Michael Beard foi abordado por um jovem que lhe perguntou onde tinha ido buscar a história do comboio. "Foi como disse", respondeu. O interpelador foi em frente no reaciocínio e explicou que aquela história era conhecida, mudadada aqui e ali, mas mantendo a mesma linha no essencial. "até tem um nome", disse. "É o ladrão involuntário".


Ontem ao fim da tarde dei uso pela segunda vez mensal do costume ao cartão de crédito do banco. Na operação de rotina bi-mansal parei numa das bombas de gasolina do Candal e atestei o depósito com gasóleo. Hoje à tarde abri a carteira e não vi lá o cartão de crédito. A minha cabeça passou por acusar mentalmente o homem das bombas, os clientes que lá teriam ido a seguir ou eventualmente alguém que tivesse visto a minha carteira e tivesse de lá retirado o cartão. Saio a correr da esplanada, ligo a ignição, ponho o carro a correr ainda mais depressa e em casa ligo-me à internet e ligo ao banco para cancelar o cartão. A meio da conversa com o senhor que em Lisboa procedia à anulação, levo a mão ao bolso dos calções e descubro lá o cartão de débito. Abro a carteira e verifico que o cartão de crédito esteve sempre lá dentro, embora estivesse numa ranhura que não a habitual. Naquel fase da viagem, já não havia marcha atrás possível. Anulei um cartão que tinha dentro da carteira. O problema esteve sempre na forma como os meus olhos (não) viram a acção e não nos outros. O erro vai custar-me cerca de 30 euros. Ladrãozito involuntário de mim próprio.

O réptil

Em fim de ciclo, o treinador de futebol está sozinho na selva e é o primeiro a ouvir barulho da cobra no mato, a arrastar o fim.
Hoje o estádio está cheio, os jogadores está a marcar muitos golos, o futebol que a equipa tem para apresentar podia até ser vendido em pequenos frascos como um perfume. O barulho nas bancadas tem o cheiro da vitória. Estão todos surdos no estádio, menos um. No clube em que está, o treinador sabe que quanto mais longe do primeiro lugar, mais perto da porta de saída. Mais perto da selva.
Num passe mais largo rente ao chão, o som do couro da bola a cortar a relva entra nos ouvidos no treinador como o tal barulho da cobra prestes a engolir um homem inteiro. O animal que o devora, não o devora sem antes lhe deixar as pistas todas sobre a evolução da relações humanas. Os répteis não sobrevivem sem a renovação dos tecidos. Não crescem sem a mudança total e recorrente de pele. Uma pele velha que tenha resistido à substituição pode fazer apodrecer os novos tecidos ou pode causar necroses. Elementar meu caro treinador de futebol.
Nesta fase de peles em trânsito, a nova que está para chegar, mas que só chegará saudável se tiver havido a remoção total da anteriro, nesta fase a ciência aconselha: nada de stress e cuidados com parasitas externos.
Um clube de futebol sobrevive no jogo da imitação dos répteis. O treinador é a pele. A essa, já vimos o que acontece de tempos a tempos.

26.5.10

Gato Pardo

Sentado ao balcão, tenho ao lado um casal muito bem parecido com sessenta e muito poucos anos. Somos os três a plateia do dono do café. Ele gesticula para explicar com os braços a forma como tentou fazer o resgate de um animal doméstico que andava perdido há três semanas. Nesta altura em que tomo atenção ao monólogo entusiasmado do único actor da cena, quando ele baixa um braço e levanta o outro, eu confesso que não estou a ouvir a aventura e dou por mim a pensar numa maneira de escrever a história mais tarde.
O dono do café, sempre depois do fecho, tirava o avental de dono do café e era o homem do assobio. Palmilhava a escuridão dos acessos a casa, empurrava arbustos para o lado, espreitava para lá dos muros, olhava com medo para a estrada, não fosse dar-se o caso de ver na estrada um animal anteriormente conhecido por gato, estragado e morto pelos pneus de algum carro.
Estou na ponta mais à direita da plateia de três. Estamos a assitir ao segundo acto de três. Ao fim de três semanas, o assobio fez eco. Bem, não era bem eco: o assobio teve resposta. Um gato miava come se estivesse rouco, com a falta de força de quem está doente. O homem deixou-se levar pelos ouvidos até um sítio com árvores rasas. Afastou-as todos e ganhou no campo de visão um buraco. Naquele plano picado, o gato pardo podia ser o dele ou não. Em camisa de manga curta, já depois da meia-noite, relativamente longe de casa e sozinho num baldio, sentiu medo e ficou a olhar para o gato, com pele de galinha nos braços. Foi a casa.
No terceiro acto, o dono do café já tem na mão um vara fina de ferro. Na vara amarrou um fio. No fio amarrou uma bola. Enfiou a invenção no buraco à espera que gato se lembrasse de cravar as unhas na bola como um guarda-redes e que viesse à boleia dela para a superfície. Aconteceu o que tinha de acontecer. O gato não era um peixe e por isso aquela espécie de cana foi atirada para o chão. E dono que foi a casa e com o calor da genial invenção nas ideias, nem lhe passou pela cabeça a ideia de um casaco para cobrir os braços.
Tornou a olhar para o gato e gato pareceu-lhe mais pequeno. Arriscou. Meteu o braço direito no buraco e rangeu dentes para o caso de vir por aí alguma dor arrepiante. Mas nada disso! O gato deixou que mão fosse um elevador e decidiu ficar sossegado à espera de ver onde a porta ia abrir. A porta abriu no colo do dono do café e do gato. Ao levá-lo para casa, sentiu-o mais leve no braços. Espantava-se com a façanha de um gato que viveu sempre dentro de casa ter conseguido resistir à morte sem a alcofa, o leite no prato, o fimbre e os enlatados. Como se o intinto animal fosse apenas uma coisa dos livros e nunca uma expressão que encerra realidades.

25.5.10

O chão que ela pisa

Sabe bem o frio do soalho de madeira por baixos dos pés. Estes dois encaminharam o corpo daqui para o lugar onde está uma fruteira em arames de inox. O corpo regressou com uma maçã nas mãos e com os pés felizes. O esquerdo e o direito, só costumam sorrir assim quando estão a tentar desenhar a última obra prima, no interior de um par de chuteiras. Não é normal o facto de andarem como se andassem nas nuvens no estado de nudez em que se encontram, mas para isso há uma explicação e a explicação é a de o soalho estar a bombear ar puro ao corpo inteiro. Chegando ao ponto de arejar a própria cabeça de um português desiludido com o futebol de uma selecção que teima em meter os pés pelas mãos.
Vamos então ao chão que ela pisa, sendo que o chão que ela pisa, aqui, não poderá ser nunca o livro de Salman Rushdie musicado pelos U2 sobre a história de uma banda com um casal no meio. O chão que ela pisa é neste particular o caminho feito e a fazer pela selecção portuguesa de futebol. Sem recurso ao GPS, chego-me à frente para afirmar com estas letras todas que por este andar, mantendo esta rota, e nesta velocidade de quem vai em passeio, a África do Sul que vai surgir no horizonte é o fim de um continente numa falésia sobre o mar revolto e numa zona sem praia. Adivinha-se queda livre e inevitável naufrágio. E isso seria uma tormenta.
A selecção portuguesa que jogou e empatou a zero com Cabo Verde, essa de Queiroz, cabe na metáfora de uma mulher de século XVIII dentro do espartilho. O meio campo, está preso ao chão por cordas que podiam ser as cordas que esmagam a cintura. Com isso, lá em cima, no ataque, respira-se com dificuldade normal de quem tem falta de ar, de bola. Em baixo, na defesa, não chegou a dar para ver se junto à relva, a defesa portuguesa dá os sinais vitais que os meus pés dão sobre o frio confortável deste soalho. (professor, estamos na era do topless. Ponha lá os rapazes à solta.)

23.5.10

O alfaiate português

No final de estação, e ultrapassadas as inevitáveis vaidades da passerelle, o mundo descartável da moda reunia nos bastidores e aguardava a sentença, sempre absoluta, de juízes extremamente convictos. Entravam pelas portas amplas da rua dos ateliers finos, apontavam o dedo, faziam beicinho, decidiam se sim ou se não com uma minimalíssima expressão de rosto, compreendida de imediato pelo mundo interior de criadores, criadinhos e afins.
A mercadoria reprovada era atirada sem perder tempo para lá da porta estreitinha dos fundos e naquele lugar os fundos confluíam todos num beco com saída para um braço de rua onde haveria de passar o camião do lixo.

Aqui as grandes casas são clubes de futebol. A mercadoria é o jogador de futebol. Os juízes são os directores, os treinadores e os empresários. Milão podia ser uma finíssima escolha para falar de estilistas e arredores, mas não vai ser. Será o lugar onde o camião do lixo chega com a mercadoria, proveniente de inúmeras cidades europeias, com mercadoria que ninguém quis ter, nem sequer na prateleira.
Cambiasso e Sneijder estavam a mais nos catálogos madrilenos. Eto´o tinha conhecido o fim da linha em Barcelona. Diego Milito andou dez anos pelo velho continente sem conseguir convencer nenhuma agência de castings e por aí foi andando sem nunca ter o passe para os grandes desfiles mundiais. É assim parte da história dos jogadores de futebol a quem um dia a saída foi indicada pelo juízo absoluto.
Na capital da moda, o presidente, que era o Massimo, juntou os retalhos todos e mandou emissário à freguesia de Aires. O emissário, chegado ao concelho de Setúbal, encontrou um alfaite também ele atirado para a rua, na condição de milionário, mas para a rua, por um oligarca viciado na roleta russa. O português era o homem à medida do fato. Trabalhou durante dois anos, cortando aqui, cosendo ali, subindo uma baínha, retirando um bolso, acrescentado botões. Ganhou dois prémios anuais italianos. Saíu do quarto de costura e foi a Madrid apresentar o resultado. Os homens mais ricos da cidade, no lugar da criação, compraram o criador. Criaturas!

22.5.10

O comboio de Liège

... acontece que no ano 2000 o mundo já era todo moderno. Daí vem o facto de eu ter estranhado a cor antiga das carruagens castanhas. O interior usado mas limpo de cada uma sem excepção. Resumindo: o ar velho - velho mas ainda não tão velho que se pudesse chamar antigo - do comboio responsável por unir de forma quase directa a cidade de Spa à capital Bruxelas. Admirei a Bélgica por ser um país mais rico do que Portugal e por não desperdiçar dinheiro em vaidades para as quais o dinheiro é caro.

Estou a fazer parte do caminho de regresso a Portugal. O táxi tinha chegado sem falta às 5 da manhãm ao hotel Dorint, onde fui jornalisticamente muito bem baptizado (Manuela Brandão, Eugénio Queiros, Jorge Monteiro, António Casanova; Paulo Duarte, Rui Gomes, Paulo Silva, etc, etc etc,). Fomos de Spa pelas luzes do carro e dos postes até Liège. No comboio era eu, a minha mala, o meu sono e belgas a caminho da ruralidade dos empregos. Tanto era o sono que já não me lembro se o comboio chegou perto do aeroporto ou se cheguei a seguir caminho noutro táxi. É indiferente.
À hora a que adormeço no avião para o Porto, nesse princípio de verão do ano 2000, Louis Van Gall é despedido do Barcelona e chega a seleccionador da Holanda. José Mourinho está para fazer a estreia como treinador principal no Benfica. Nesse mesmo defeso, um miúdo de 20 anos, Diego Milito, está começar uma época que vai terminar com o título de campeão argentino no Racing Avellaneda. O nome Robben só é conhecido nas camadas jovens do Groningen. Júlio César é um goleiro "minino" no Flamengo. Sneijder e Cambiasso ainda têm cabelo e jogam nas escolinhas do Ajax, um, e no Independiente, outro. A lista começa a parecer um comboio que não vai a lado nenhum. Já cá voltamos.

Meia dúzia de dias antes, uma sucessão de acasos leva-me ao sítio onde vou acabar esta história. O FC do Porto quer contratar Dimitri Alenitchev. Sei que é russo e que joga no Perugia de Itália. O Perugia está em Liège para jogar uma eliminatória da taça Intertoto. Apanho boleia dos camaradas de reportagem do jornal A Bola e consigo o exclusivo radiofónico da primeira entrevista do médio ofensivo russo para Portugal.
O dia seguinte é o dia do jogo entre o Standard de Liège e o Perugia. Conseguimos as acreditações necessárias e vamos para o estádio fazer a cobertura do encontro com o futuro reforço portista. Logo à entrada julgo que o Eugénio me chama à atenção para o Luciano D´Onofrio. Do nada reparo num personagem que à partida não devia fazer parte daquela história. Estavamos à procura de algum emissário do FC Porto e nada. Quem está em Liège para assistir ao jogo é o presidente da SAD do Sporting, o Luís Duque. Lá perguntámos se ele queria também o Dimitri. Ele sorriu e disse que não, que não. Estava à procura de um defesa central. Quem? "O Daniel". Quem é o Daniel? "O Van Buyten". Ouvi este nome pela primeira vez e depois disso confesso que acompanhei sempre à distância a carreira de um central que nunca chegou a vestir a camisola do Sporting.
Hoje voltei a reencontrar o Daniel, por via da transmissão televisiva. Tinha uma camisola vermelha com o número 5. Levou pela frente com o rapaz que um dia foi um miúdo do Racing de Avellaneda. E descarrilou como nunca descarrilaria um velho comboio belga.

PS: no resto da história, o treinador debutante ganhou ao seleccionador da Holanda.

21.5.10

Uma rua de levar para casa

Tinha desde sempre o sonho de ver o chão nascer aos quadradinhos. E não é que ele estava a ser parido passo a passo? As solas das botas caminhavam triunfantes sobre um filme a preto e branco que até à data só tinha passado por ele no mundo dos sonhos. O sorriso tapava-lhe as orelhas e era por isso que não ouvia a mãe a dizer para estar quieto, para parar de andar como um perdido e de incomodar toda a gente com os encontrões. Dizia-lhe a mãe para abrir os olhos, como se fosse possível arregalar mais aquelas duas órbitas inquietas. Havia lojas de gelados que se comiam em cones de bolacha até ter tudo desaparecido e o gelado ter parecido um sonho. Havia uma fábrica de bolos muito antiga, tão antiga que diziam ter vindo do Brasil ao sabor do vento, tendo o vento ficado adocicado desde então. Ao lado morava uma senhora africana. Da cor do chocolate. Tinha uma sociedade com o dono da leitaria. O dono da leitaria tinha entretanto oferecido uma loja de queijos ao filho mais velho, por alturas do casamento deste com a filha homem que mandou semear um jardim do tamanho de um campo de futebol. Veio gente de toda a parte para a boda. Depois do sim e do sim os rapazes mais novos jogaram com uma bola oferecida pelo inglês do correios ao noivo. Os outros convidados trouxeram todos as cadeiras para fora da igreja e ao redor do jardim fizeram uma bancada. Os pescadores contribuíram com duas redes. Em casa do ferreiro encontraram seis paus e fizeram duas balizas. No final toda a gente teve direito a levar um bocadinho da rua para casa.

59 segundos

Mulheres e homens sintonizam o mundo em frequências distintas. Ficaram elas com o corpo mais perfeito, graças a deus há quem diga, e ficaram eles com a capacidade de observar e absorver a beleza a partir de fora, graças a deus há também quem diga. Ficaram eles destinados ao pensamento e à força desde os primórdios dos tempos, reza a história, ficando a elas consignados o zelo do lar, o cuidado dos filhos e quando sobrasse tempo, o tratamento da beleza das próprias. O mundo foi assim durante muito tempo até que um dia o mundo se fartou de ser assim e ainda bem. A coisa agora anda mais ela por ela no entendimento da comparação entre homens e mulheres. Quase todas as tarefas, obrigações, direitos, deveres, profissões têm os dois sexos. A sociedade “bissexualizou-se” depressa e bem como dificilmente há quem. E até aí tudo bem! Agora… chegar ao ponto onde nas bancas dos jornais salta aos olhos (e cabelos e boca e nariz e cérebro) uma revista a dizer às mulheres que é possível mudar de vida em 59 segundos… A dizer e a espicaçar a fêmea no sentido de a fazer conjugar o verbo mudar em excesso de velocidade. Isso é entrar sem carta de condução num carro sem travões nem direcção assistida. Diz um homem, incapaz de mudar de cuecas em menos de um minuto

Mostarda

Lisboa está a lavar a cara para sair à rua. As torneiras da cidade viraram todas o letreiro a dizer fechado para a parte de dentro. Os corpos tiram a roupa, as pessoas conseguem ser nús solitários ou quando muito aos pares. Só os balneários assumem a reponsabilidade de receber gente nua aos magotes, devidamente dividida pelo mesmo sexo e aí os corpos são desportistas em desespero de causa, cansados, acabados de suar à força e em esforço. Água vem, água vai. Nesta certeza redonda da repetição de movimentos, chega a hora do regresso da cobertura às partes. A cidade vai sair à rua com chinelos, sandálias, sapatilhas e sapatos. Vai de calças quase toda e de casaco. A noite vai trazer uma tendência quase nula de mulheres com pernas à mostra. A Lisboa que está a jantar no bairro Alto não é só Lisboa, é Portugal de norte a sul e é o país na longitude. Tantas línguas se misturam à porta dos rsstaurantes. Lisboa está com ar de ter no regaço o mundo inteiro. À minha mesa, ao meu lado, está uma menina de doze anos que nasceu na Irlanda. Aprendeu a falar português sozinha quando tinha quatro. A primeira palavra que disse foi mostarda. Teve bom gosto.

1986

Lembro-me de ter os cabelos compridos com cheiro a fumo de cigarros. Lembro-me que era de manhã e estava frio, muito frio, frio ao ponto de ver na respiração o estilo dos fumadores. O meu pai e eu caminhavamos com a pressa dos que não querem mesmo mesmo chegar atrasados. O tabaco dele vinha sempre à baila nas conversas quando alguma senhora se chegava para me dar um beijo e dava mas dizia ó rapaz até parece que também fumas. E fumava, expelindo o ar quente dos pulmões entusiasmados em direcção à brisa gelada, afinal era um miúdo a quem o pai tinha levado para o acompanhar a um comício de uma campanha eleitoral. Neste primeiro ou segundo sábado de 1986, o rapaz de onze anos tinha a certeza de ser um homem informado, ciente das escolhas sociais adequadas à política que estava a fazer falta ao país. Um homem de sobretudo no palco pegou no microfone para chamar o Diogo Freitas do Amaral. Nesse dia vi pela primeira vez o antigo líder do CDS.

Uns meses mais tarde, no dia em que fiz 12 anos, a 9 de março, o Mário Soares tomou posse como Presidente da República, depois de ter vencido as terceiras eleições presidenciais desde o 25 de abril de 1974. Nesse dia atribuí parcialmente a derrota do Freitas ao facto de eu, e de tantos outros como eu na minha escola, não termos à data idade suficiente para votar. O melhor daquela manhã na praceta 25 de Abril, em Vila Nova de Gaia, foi ter passado o tempo todo de mão dada com o pai. Já nem me lembro da úlima vez em que o fiz.

E também não me lembro da última vez em que estive nas proximidades do Diogo Freitas do Amaral. Vou estar com ele esta noite. Gostava que no comício de 1986 ele nos tivesse dito que um dia ia ser ministro do negócios estrangeiros pelo PS. Depois o tabaco faz mal à saúde.

Memórias de uma quarta

A cor do sol anda a enganar o termómetro pela ocorrência de ter uma aventura com o vento. Isso começa a ser um atraso de vida. A luz vista da janela do segundo andar induz o corpo a cobrir as partes com roupa sem mangas, isto no respeitante aos membros superiores, e tecidos mais finos e calçado leve para as partes comuns ao rés-do-chão de uma pessoa. E o corpo assim faz, assim indo degraus abaixo na direcção da rua. Ao abrir ao porta é estar a abrir a caixa dos segredos térmicos. O vento não sai da beira da cor do sol. O pobre termómetro, guardado no armário dos medicamentos lá de casa, não faz a mais ténue ideia dos factos. A solução é subir e abrir o armário da roupa com muito cuidado, para que este não se aperceba e não vá de contar tudo ao primo afastado, o armário dos medicamentos. E abrindo então silenciosamente o armário da roupa, escolhe-se um casaco de meia estação. É remédio santo. O corpo não vai ser afectado pelo caso verificado entre a cor do sol e vento. O termómetro continua a acreditar na luz que vê pelo vidro da janela. E vai medindo os dias pela cor do sol.

A sanfona

A avenida da Boavista, nos dias bons, tem momentos iguais aos números de magia. Ela consegue ser aquele truque dos intermináveis lenços puxados pelo ilusionista. Aquilo nunca mais acaba. E isto também não, a capacidade de repetir os dias, repetindo rotinas às centenas de milhares, havendo em todos dias instantes que nunca tinham sido “publicados” antes.

Hoje andava um cão branco com um cesto pequenino na boca. Os dentes seguravam o arame. O cão estava sentado ao ombro de um homem moreno, extraordinariamente novo para aquele papel e invulgarmente baixo para quem já tem mais de 20 anos. O tacanho torso do pedinte não cumpria por ali a missão. Tinha na posição de uma mochila colocada à frente uma sanfona onde faltavam teclas. Os dedos dividiam tarefas entre a construção de um ruído pobre e o botão do semáforo que é como um requirimento para pedir verde para os peões e vermelho a travar as rodas do trânsito. O homem da sanfona nunca pedia dinheiro a quem passa a pé junto a três hotéis de cinco estrelas. Olhava na direcção dos carros como quem via mealheiros ambulantes. E batia nos vidros com o queixo. Tocava na sanfona com as mãos e ajudava ao balanço com um joelho. O cão esticava o focinho na mesma esperança dos pescadores quando a rede vai ao mar. Chamar um ilusionista era capaz de ser mais bem escolhido, se para ali estão com a ideia de ver moedas no ardil.

20.5.10

Porto

Uma rapariga dança no passeio, na metade do caminho da rua Formosa, entre Santa Catarina e a rua da Alegria. As calças são justas, pele de zebra. Claro que sim, pretas e brancas. Para cima tem uma t-shirt azul do super-homem. Rodopia com a dança dos pés e rodopia com o braço direito ao alto e de indicador em riste. O Michael Jackson está no primeiro andar, no princípio de uma carreira a solo, a ensaiar uma música à qual vai dar o nome de don´t stop till you get enough. Este som, que vem da janela de um velho prédio da baixa do Porto, começa agora a indavir as ruas, e não duvido que, um dia, vá conquistar o mundo. O mundo está a encolher a olhos vistos. Apenas um quarteirão mais acima, em Fernandes Tomás, o Woody Allen está no primeiro lugar da fila na paragem de autocarros, mesmo em frente ao Plaza. Tem as mãos nos bolsos, a cabeça levantada na direcção do telhado da igreja dos congregados, os óculos pretos em massa, no lugar do costume. Só a cor do cabelo destoa um pouco. É de um castanho uma pouco mais claro do que o normal. Isso e a roupa levam-me concluir que aquele Woody Aleen é o da década de 70. Vinte metros mais acima, a loja de instrumentos faz da montra um palco onde cabem a bateria, uma guitarra eléctrica, duas violas, uma concertina, o contrabaixo e os ferrinhos. Um dos tripés da exposição está vazio. É isso, falta o clarinete. Entro, pergunto e o dono diz que acaba de ser despachado por via marítima para Nova Iorque.Pode ter sido de ter dormido poucas horas de sexta para sábado. Mas já que estou acordado e é sábado de manhã e estou na baixa do Porto, o melhor é parar de fazer filmes. Deve ser do estômago vazio… Subo as escadas rolantes no interior de um centro comercial e é aí que trato de elevar esta tosta mista, onde misturo realidade e ficção, ao extremo. Não é que para lá de um muro baixo em acrílico transparente, o Leonardo Cohen desembrulha um bolo de arroz com mil cuidados, deslumbrado com a beleza do papel, mas também por causa da velocidade que a idade lhe autoriza os movimentos. Sim. A idade, com o tempo, dá ao corpo um limitador de velocidade. O Cohen foi o único a chegar aqui a esta história em tempo real. Talvez por isso permaneça sentado. A molhar o bolo de arroz no café e a lamentar a pequenez da chávena, enquanto que o Michael Jackson se despede dos músicos com um até sempre e o Woody apanha o autocarro, já a pensar que a viagem de avião o vai fazer chegar aos states muito mais cedo do que o clarinete. Quando o instrumento chegar aos Açores, ele afinal conseguiu acabar o argumento de mais um filme e começa a dizer em voz baixa que a viagem ao Porto talvez tenha sido uma perda de tempo porque já não vai ter tempo para músicas. O Jackson descansa em paz sem problemas de tempo. O Leonard Cohen consegue arranjar tempo para mais um bolo de arroz no Plaza. Ao atravessar a rua, a rapariga das calças de zebra mistura-se com a passadeira. Perco-lhe o rumo sem perceber se o tempo vai fazer dela uma super-mulher.