11.10.10

escrever um livro como quem anda a pé

um pouco mais do que já está feito

"Escreveu o disco é da cor das dores invisíveis. Os funerais estão cheios de discos calados, discos que se falassem não falavam, cantavam músicas com notas graves ao piano.
A agulha ao calcar o disco, antes de chegar ao som, faz o barulho de pés no chão, das solas dos sapatos de homem nos paralelos, faz a reprodução do barulho das solas e dos tacões nos paralelos e nas pedras vadias dos intervalos dos paralelos do cemitério. Ellis tomou nota do entendimento dos factos e antes da agulha ter chegado ao som, chegou com as mãos ao caderno, com a mão direita ao lápis, com o lápis à folha, chegou com falta de ar à história e a história passou a dizer o princípio de uma música é a última morada. O primeiro acorde, a primeira estrofe, venham juntos, venha um de cada vez, no segundo em que dizem bom dia estou aqui estão a dar a extrema unção ao silêncio, a ligar para a agência funerária, a discutir o preço do serviço, o número de velas, o molho de flores, a qualidade da madeira, a cor do caixão, o latão ou o ouro das pegas, estão a abrir a cova, a descer a urna lacrada, a mandar uma flor contra a cruz de liga de metal, a mandar outra, a atirar terra para cima, com a mão, com as pás, a cobrir o corpo, a dizer até sempre, a cobrir as lágrimas, a desejar paz ao subterrâneo, a caminhar de costas para o morto e de frente para o vazio. A agulha chegou ao disco. A bateria foi a primeira a chegar, aos solavancos, com os passos trocados. Não deixava de ser agradável. Só não deixava de ser da cor dos discos. Vinha às apalpadelas, sem saber do que sofria, escreveu. As pálpebras fechadas pintam os olhos de preto. Já estava a sonhar e os sonhos nunca chegam ao papel no formato original."

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