11.10.10

começa assim e vai acabar dentro de seis meses

O plano caiu em cima da cabeça, colocou reticências, apagou, escreveu o plano caiu dentro da cabeça, escreveu o plano caiu dentro da cabeça tendo chegado sem aviso com a velocidade de uma bala. Pôs um ponto. Escreveu sobre a arma para dizer detalhe nenhum sobre a proveniência do projéctil, sobre o calibre, o peso, a cor ou o tamanho. Escreveu é provável que a arma tenha existido, quer dizer a arma existir existiu e existe, se bem que não haja uma testemunha para amostra, porque a bala caiu dentro da cabeça vinda de um destinatário desconhecido e de um destino da mesma sabedoria. Escreveu não houve dedo mas houve gatilho, o sentido figurado foi o detonador numa pistola invisível, mas que talvez fosse do tom do cobre e da madeira, que é de bom tom apesar de ser uma pistola, e era pesada pois uma pistola leve não dispara uma bala assim. Escreveu uma bala assim chega sem se saber de onde, ocupa o espaço, enche o vazio, fertiliza uma ideia, abre um caminho, acende uma luz e mesmo que tudo seja em sentido figurado, faz sentido, faz figuras, cria linhas, escreve frases, enche um livro.
Escreveu que há cinco minutos não tinha nada, uma saída, um caminho, uma pista, tinha linhas por onde seguir, não tinha pano para mangas, mas tinha páginas para letras, tinha tinta, ia comprar mais tinta e em vez de pintar uma casa, desenhava o esboço de uma dança, escrevia um romance. Escreveu mais tinta para fixar as ideias, ia pedir dinheiro emprestado à senhora Ferguson, não lhe ia dizer para quê, quer dizer ia dizer para tinta, ia dizer para o depósito de gasolina da motorizada, ia dizer para outra coisa se ela não acreditasse e pensar na outra coisa a caminho de casa da senhora Ferguson e ia ter meia hora para pensar porque decidira ir a pé. Escreveu andar a pé é uma forma ecológica de andar para a frente, a menos que se esteja a caminhar para a trás e a minha vida a andar para trás já andou, mas agora não porque uma ideia caiu dentro da minha cabeça e eu agora tenho um plano.

Quando parou de escrever pousou o lápis de madeira em cima do tampo da secretária de madeira, tirou uma farpa do dedo indicador da mão direita, virou a folha do bloco até o bloco ter ficado fechado. Pegou no chapéu de fazenda que era cinzento e agarrou um casaco comprido de tecido sintéctico omni-tech que era preto. Pegou num guarda-chuva cuja história dava para escrever um livro, ou um capítulo de um livro, e que ele uma dia escreveria, guarda-chuva que era comprido e que era preto. Deslocou-se no interior da casa pela sala, onde estava, até à casa de banho, onde urinou, até cozinha, onde pegou numa maçã verde, até ao hall, onde se viu ao espelho, até à porta da rua, por onde saiu. A rua era uma homenagem conservada no tempo à Rainha Vitória. Era uma rua mas também era um quadro, porque era um lugar bonito para desenhar com a calma de um pintor idoso e para colocar dentro de casa em cima da lareira ou porque não na parede ao lado da mesa de jantar. A rua que também era um quadro também era um relógio visto de dentro da janela da cozinha. Às seis da manhã vinha o pão, às seis e meia vinha o leite e às sete o jornal. Às sete e meia havia centenas de pés, dezenas de carros, pessoas em marcha no sentido do trabalho. Às dez vinha o carteiro e a essa hora vinham as viúvas para as janelas e por volta dessa hora vinham os velhotes viúvos, em absoluta minoria, para a rua e foi por volta dessa hora que Ellis Parker desceu os três degraus, virou à direita no passeio e se sentou na última vaga do banco da paragem do eléctrico. Subiu quando o eléctrico chegou com as golas do casaco levantadas, desceu-as ao sentar-se numa fila da ponta traseira, encostado à janela. Pelo caminho viu outros quadros com os quais podia facilmente decorar as assoalhadas todas lá de casa. Saiu deste pensamento quando a mão esquerda fez puxar o fio de cabedal e o fio de cabedal fez tilintar o sino e saiu do eléctrico e por sorte a paragem era mesmo em frente à loja de discos.
Entrou na loja de discos como quem recupera de um estado de coma, sentia com o nariz o faro da letra “T”, deixou-se levar pelo cheiro e guiou-se com olhos. The National era o que estava escrito na capa preta de um disco a preto e branco. The National estava escrito a amarelo. Por baixo cinco letras brancas diziam Boxer. Ia pegar no disco, pagar o disco, sair dali com o disco, viajar de eléctrico com o disco, chegar a casa com o disco, colocar o disco no gira-discos, ouvir o disco, sentar-se a ouvir o disco, pegar no lápis a ouvir o disco e escrever um romance a ouvir o disco. Escreveu na folha tudo que tinha acabado de fazer.

Sem comentários: