11.10.10

Não tinha de ser

Lembro-me de ter dormido com as chuteiras aos pés da cama, por cimas dos cobertores, com a colcha branca de renda feita pela minha mãe puxada para trás para não a sujar. As chuteiras pretas com sola preta de pitões de borracha e duas tiras brancas no peito do pé eram minhas desde o meio-dia, a hora em que as  troquei por uma nota de quinhentos escudos na feira de Espinho. Durante a tarde fui à garagem do meu pai, com cuidado para não riscar o carro, e peguei na lata de tinta preta e num pincel. Sentei-me no chão de cimento, peguei nas chuteiras e pintei as tiras brancas de preto, com cuidado para não riscar de preto a tinta branca da chapa do carro. Tinham tempo para secar, as chuteiras, até porque a estreia no pelado do parque de jogos da Rainha, com a camisola do Serzedo estava marcada para as cinco da tarde de amanhã, um sábado de verão de 1985.
Por esses dias, um goleador brasileiro do Fluminense  chegava ao FC do Porto, e apesar de goleador, tinha o lugar tapado por duas botas de ouro nos pés do Gomes. O brasileiro chamava-se Paulinho Cascavel e acabou recambiado para Guimarães, envolvido no negócio do guarda-redes dos juniores, um puto de bigode chamado Best, que devia ser o melhor do Brasília e do Dallas e pouco mais.
Ao longo da épocas seguintes o Cascavel marcou sempre mais golos do que eu, mas ele tinha a vantagem de jogar na relva, a ponta de lança ,com chuteiras adidas, numa equipa que jogava ao ataque, enquanto que eu variava da esquerda para a direita nos campos pelados de Vila Nova de Gaia com as chuteiras da feira de Espinho, esfoladas no osso do dedo grande e com terra por baixo das meias na sola do pé.
Um dia, era eu mariola dos juvenis, onde fazia com simplicidade a posição 10, e vejo na primeira página da Gazeta dos Desportos o Paulinho Cascavel com a camisola do Sporting. Eu continuava com as listas horizontais, a azul e branco do Serzedo, mas tinha por dentro, no coração as cores da camisola do Paulinho. Está na história do futebol português: ele continuou a marcar mais golos do que eu.(outro da do histórico: alguns miúdos jogavam de buço por causa dele).
No último sábado havia a hipótese de jogar de igual para igual com ele pela primeira vez na vida. Os dois no mesmo relvado, com chuteiras parecidas, embora ele continuasse com a vantagem de jogar mais perto da baliza. Para isso era preciso que o Serzedo vencesse o Canelas e que o Guimarães ganhasse à Académica. Assim foi.
O tão esperado encontro dentro das quatro linhas estava marcado para a tarde do último Sábado., num jogo de veteranos. Ele jogou e marcou um golo. Eu fiquei em casa com a rótula partida. Como no resto da história, vantagem para o Paulinho Cascavel. Foi por pouco que não nos encontramos em campo. Estava escrito que não tinha de ser.

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