11.10.10

Azulejos brancos

O corpo fez um esforço e empurrou as pernas que vinham de duas fintas para um inesperado sprint, transformado em notícia de última hora, à custa uma saída de drible mal calculada.


O homem aleijado entrou no hospital atento às paredes para ver o reflexo das luzes no azulejo branco, à procura de um efeito de espelho que lhe pudesse confirmar o ar doente na cara que a cara via no inchaço do joelho. E esse foi o primeiro problema.
O jogador é o soldado em sentido figurado, pelo que morrer em campo, mesmo que em calções, manga curta e meias pelo joelho, morrer em campo é o exagero de linguagem do desporto mais habitado do mundo, dito por quem vai à guerra quando afinal estão ali todos numa batalha de chuteiras, caneleiras e uma bola da cor da paz, a fazer trincheiras imaginárias na relva.
A crise mandou dizer às paredes que o preço do cimento está pela horas da morte. E a cola, e os tijolos, para já não falar dos azulejos, os tijolos custam o dinheiro que os donos do dinheiro não estão dispostos a levar para o centro hospitalar, receando que aí o dinheiro não resistisse a uma aplicação cirúrgica e que depois não houve mais em sotck para a transfusão necessária. Receavam mandar mais dinheiro para dentro das portas irmãs das portas das antecâmaras da morte.
Decidiu numa fracção de uma fracção de segundo. De peito para fora, bola no pé direito, máquina de calcular no coração a bombear o sangue para o corpo todo. Tinha adiantado a bola quatro metros para lá do previsto e esse imprevisto tinha posto a bola a dois metros de um soldado do pelotão inimigo. O coração fez as contas, contado só com o jogo limpo, descontando as regras dos defesas que fazem a defesa do passa a  bola mas não passa o homem e vice-versa. Chegou primeiro, ganhou a bola no derradeiro fôlego e ao ver-se com três amigos e dois adversários pelo caminho até à baliza, aquela ameaça de golo morreu à nascença porque a perna esquerda foi ancorada na relva por uma rasteira que não vinha no argumento do filme. Era uma vez a história de uma rótula partida.
E o problema foi de facto esse. Nas paredes só havia pladur e tinta. O paciente não tinha forma de ver a doença ao espelho. Talvez na enfermaria houvesse brilho do chão ao tecto. Talvez sim, talvez não, ganhando o último dos incertos. 
A caminho do hospital, vai um homem deitado numa maca amarrada à parte de trás da ambulância, valha ao senhor que por dentro e não arrastado no exterior gravilha fora, se o chão fosse de gravilha. As cores de Manchester permitiram a um jogador de Serzedo uma entrada rápida e triunfante no quarto escuro da radiografia. A mensagem a preto e baço dizia da desnecessidade de uma ecografia. Era uma rótula partida e ponto.
Os enfermos, camaradas casuais do parque de estacionamento improvisado de macas eram todos bêbados menos dois. O da rótula e um queimado. Havia quatro bêbados em frente e dois gémeos, verdadeiros mesmo da hora dos copos, a um canto. Tinham um ressonar gémeo e meia dúzia de pontos gémeos no nariz, acabados de coser, assim como eram gémeas as marcas roxas e os inchaços nos olhos, face e testa dois dois.
A perna esquerda foi engessada. Deram-lhe duas folhas com receitas. Um papel para um consulta noutro hospital e apresentaram-lhe uma conta de onze euros.
À saída pediram-lhe para não se esquecer dos papéis com ordens assinadas e que lhe poriam o corpo a dormir. Não tinha senão o remédio de ir embora sem ver azulejos brancos, mas levava pladur numa perna inteira. Era o reflexo possível do serviço nacional de saúde.

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